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Um pesquisador brasileiro com muita experiência internacional e uma ampla gama de interesses, sobretudo crime e violência A Brazilian researcher with ample experience and publications concentrating on crime and violence since the 90's

Raça, religião e a pena de morte

A pena de morte é a mais extrema das penas no mundo moderno. Em muitos países, ela não existe. Nos Estados Unidos, alguns estados adotam a pena de morte e outros não.

Idealmente, a gravidade das penas dependeria exclusivamente das características do crime. Nem as características pessoais dos jurados, nem as características pessoais do acusado deveriam influenciar a pena.

A realidade é diferente.

Há quase duas décadas, Eisenberg et alii pesquisaram as decisões do júri em casos em que a pena de morte era uma possibilidade. Essa pesquisa era parte de um projeto maior chamado Capital Jury Project, no estado da Carolina do Sul. Coletaram diversas informações:

  • l Sobre o crime;
  • l Sobre várias características raciais, econômicas e sociais dos acusados e suas famílias;
  • l Sobre o processo de decisão do júri;
  • l Sobre o comportamento do advogado de defesa;
  • l Sobre o comportamento da acusação;
  • l Sobre o comportamento do juiz.

É importante entender que o comportamento do júri e a decisão são processos e não momentos. O júri é dinâmico, muda durante o processo, permitindo analisar a opinião inicial e como ela se modifica, assim como analisar as correlatas das decisões individuais em qualquer momento deste processo.

A raça e a religião influenciavam somente o voto inicial.  Os jurados brancos votavam mais pela pena de morte do que os jurados negros – vinte por cento a mais. Os batistas “do Sul” (Southern Baptists), conhecidos pelo seu conservadorismo também expressavam o primeiro voto a favor da pena de morte com maior frequência do que os que seguiam outras religiões. A atitude inicial, que distingue os que achavam a pena de morte era a única pena apropriada para os casos de homicídio dos que achavam que era a pena mais adequada, mas não a única pena apropriada também divergiam no primeiro voto: 13% os separavam.

O primeiro voto influenciava o voto final, mas havia mudanças. O júri é um sistema social dinâmico. Sem entender esse dinamismo e seus componentes, como o papel das lideranças que surgem, e a influência dos que exercem papéis e funções relevantes, o júri se transforma em uma caixa preta, da qual só se conhece o produto final.

O júri segue o princípio da maioria em vários estados. Como raramente os negros são a maioria dos jurados, isso significa que os brancos decidem.

Advogados de defesa sabem disso.  E influenciam a seleção dos jurados, com base nesse conhecimento probabilístico, usando informações sobre raça, religião e outros fatores.

Saiba mais:

Eisenberg, Theodore; Garvey, Stephen P.; Wells, MartinT., Forecasting Life and Death: Juror Race, Religion, and Attitude toward the Death Penalty,  em Journal of Legal Studies, 30, issue 2, págs. 277-311. (2001)


GLÁUCIO SOARES

PSICOPATAS NO CODITIANO E NA POLÍTICA


Recentemente, o termo psicopata entrou no jornalismo político brasileiro. Está nas novelas, na televisão, nos jornais, na política. Há pouca precisão no uso desse termo nos jornais e nas mídias sociais. Há vários anos, estudando assassinos em série, me interessei pelos psicopatas e pelos males que podem causar. Posteriormente, num curso sobre métodos de pesquisa que ofereci em Guanajuato, uma das alunas trouxe à baila a necessidade de construir pontes entre a Psicologia e a Ciência Política, usando como argumento que quando psicopatas ocupam posições de poder as consequências podem ser desastrosas. Realizei pesquisas secundárias e uma revisão da literatura empírica, escrevendo um artigo de estilo jornalístico, que pode ser útil para alguns leitores, ainda que seja aconselhável que realizem uma atualização da bibliografia por se tratar de um tema relevante.
Transcrevo, com alguma edição:
Pensamos em psicopatas como Hollywood o faz: serial killers, estupradores sádicos etc. Porém, há psicopatas menos óbvios, e há de sobra. Muitos leigos acham que a desordem “está na cara”, mas não está; que seja só “de homens”, mas não é. A mãe de uma aluna mentia, enganava e roubava com uma cara deslavada. Porém, a patologia explodiu e tentou matar o marido com uma faca. Teve que ser internada. Até então, ninguém fora da família suspeitava que ela era uma psicopata. O interesse da aluna não era acadêmico: queria saber se estava fadada a ser psicopata também. Ela relatou, também, que a mãe mentia e mentia. Parece ser um traço que acompanha os psicopatas e que é um de seus pontos vulneráveis.
Robert Hare, um especialista mundial em psicopatologias, diz que há muitos psicopatas e não é fácil detectá-los. Falam como você, se vestem como você, parecem com você. Aliás, você pode ser psicopata e não saber. Poucos psicopatas sabem que são psicopatas. Muitos são encantadores, divertidos; leva muito tempo até identificar essa perigosa desordem de personalidade.
Paul Babiak é um psicólogo, consultor de empresas preocupadas com o prejuízo causado por executivos e empregados psicopatas. Psicopatas podem subir nas empresas, até os cargos mais altos, mas é difícil vê-los como são: insinceros, arrogantes, muito manipuladores, insensíveis aos demais; se lixam com os pensamentos, emoções e dores alheias. Seara-Cardoso e outros pesquisadores localizaram as regiões associadas com a falta de empatia na presença da dor de outros, a insula anterior, o “gyrus” frontal anterior e nas áreas anteriores e médias do córtex cingulado. Fazem alianças, mas apenas na medida em que os beneficiem. São logo descartadas. Acusam os demais por quaisquer problemas e seus próprios fracassos. Os demais são objetos. Psicopatas podem causar muita dor. Muitos desviam dinheiro, dão desfalques e fraudes, mas poucos são detectados e presos antes de prejudicar muita gente. O escândalo da Enron é emblemático. Uma empresa com um ativo de mais de 60 bilhões de dólares foi à falência em decorrência das manipulações de um psicopata na sua direção. Prejudicou muita gente.
Eu acredito, sem poder provar, que o capitalismo selvagem tornou a detecção dos psicopatas mais difícil. Alguns dos comportamentos “típicos” foram incorporados pelo capitalismo do espírito (não se trata do espírito do capitalismo), pelo consumismo. Num modelo que soma zero, se os valores materiais crescem, os humanos, religiosos e éticos decrescem. A ampla aceitação da “Lei de Gerson” tornou mais difícil distinguir psicopatas de não-psicopatas. Vários comportamentos passaram a ser iguais. O consumo é um vício que passou a ser a sua própria justificativa. Os símbolos políticos ruíram, alguns por obra de psicopatas, outros não. Os deputados do mensalão são psicopatas ou simples corruptos? O juiz Nicolau e Luiz Estevão o que são? Os milhares de funcionários públicos que recebem e não trabalham? E os que perseguiram Eduardo Jorge?
Quando a ética desaparece e a sociopatia deixa de ser uma exceção individual para ser um traço social e cultural, o que define um psicopata? Os psicopatas “sub-clínicos” quase não se distinguem da maioria da população.
O conhecimento está muito concentrado nos psicopatas violentos. Um estudo de 125 assassinos canadenses encontrou uma correlação entre escores numa escala de psicopatia (PCL-R) e o tipo de homicídio: 93% eram instrumentais, práticos, frios. Hare estima que, no Canadá, pouco mais de 1% da população é psicopata. Há estimativas piores. Se essa percentagem for válida no Brasil, temos perto de dois milhões de psicopatas! Poucos são violentos, mas todos são manipuladores, insensíveis, egoístas extremos. Hare os denominou “sub-clínicos”. Vê-los e identificá-los antes que eles nos vejam é importante, sobretudo para os policiais: nos Estados Unidos, 1% a 3% da população, 20% a 25% dos presos e quase 50% dos assassinos de policiais são psicopatas.
Como se “fabrica” um psicopata? Há uma discordância antiga entre genética e fatores sociais, nature vs nurture. Todos ganhariam trabalhando juntos, mas poucos o fazem. A genética tem um papel. Em Copenhagen os pais biológicos de crianças psicopatas adotadas tinham uma probabilidade 4 a 5 vezes mais alta de serem psicopatas. Muitos estudos sobre gêmeos, bi e monozigóticos, e sobre adotados mostram a importância dos fatores genéticos, mas há exceções. As explicações sociais extrapolam de estudos que mostram que famílias disfuncionais, violentas, inconsistentes e de um só adulto produzem muito mais delinquentes e criminosos do que as famílias integradas. Porém, muitos desses estudos não sublinham os efeitos da família, mas da falta dela, ao mostrar que parte significativa da delinquência e do crime são aprendidos na rua.
Quaisquer que sejam as causas, muito passa pelo cérebro, que é diferente: Diana Fishbein encontrou diferenças claras entre psicopatas e não psicopatas em situação de risco usando PET scans. Adrian Raine comparou 22 assassinos com 22 controles, demonstrando diferenças na absorção de glucose no córtex pré-frontal. Dominique LaPierre também encontrou problemas nessa área. O hipocampo, uma área do cérebro, parece regular a agressividade e a aprendizagem sobre quais as situações que devem provocar medo. Raine, em outro estudo, aplicou MRI e uma bateria de testes a 91 homens. O grupo foi subdividido em dois, os que haviam cometidos crimes e foram presos e os que admitiram ter cometido crimes, mas não foram presos, além de um grupo controle de pessoas normais. Verificaram que o corpus callosum, localizado no hipocampo, era, na média, 23% mais largo e 7% mais comprido. O tamanho do corpus callosum se correlacionou com menos remorso, menos emoções e menos conexões sociais. Noventa e quatro porcento dos psicopatas que foram presos tinham o lado direito do hipocampo maior do que o esquerdo, ao passo que entre os demais essa percentagem era inferior a 50%. O volume do corpus callosum também se associa com deficiências na área afetiva e interpessoal entre outras características.
Psicopatas são atraídos pelo poder, não somente no sentido “macro”, mas no sentido micro também. Buscam chefias, diretorias, participação em conselhos, representante disso ou daquilo. Porém, são projetos de poder e não de realização de um programa nem de serviço a uma comunidade. Há psicopatas e narcisistas em posições que vão desde a presidência de países, governadores, presidentes de empresas, lideres de torcidas, presidentes de sindicatos, até síndicos e líderes de gangue. O efeito cresce com o poder em suas mãos. Fritz Redlich é um médico que estuda as catástrofes provocadas pelos psicopatas que ocuparam o poder mais alto em diferentes países (como Hitler, Stalin, Slobodan Milosevic, Saddam Hussein, Adi Amin Dada). Até em níveis modestos, os psicopatas usam o poder para punir e perseguir muitas pessoas de maneira cruel porque não sentem pena nem remorso.

Encontramos psicopatas em todos os lugares. Você morar ao lado de um, morar com um, ou até ver um no espelho.

Doenças mentais e homicídios

A associação, feita através da mídia, entre doenças mentais e crimes, pode ter gerado uma grave distorção na mente de muitos a respeito dos perigos que o contato com doentes mentais acarreta para as pessoas. Nessa associação, as doenças mentais são tratadas como um bloco, como se fossem todas iguais e como se todas fossem de alta periculosidade para os demais. Além disso, recebem uma atenção desproporcional da mídia que infla, na mente dos leitores, o risco que essas doenças representam para a segurança pública. Uma equipe de pesquisa, trabalhando no Département de psychiatrie et psychologie médicale, em Angers, na França, publicou um trabalho que esclarece algumas noções equivocadas. É um trabalho de revisão dos estudos epidemiológicos internacionais sobre homicídios cometidos por pessoas com doenças mentais. A cobertura começa em 1990. Analisaram, também, as relações entre definições diferentes de doenças semelhantes. Constatam que há uma associação entre ALGUMAS desordens mentais e homicídios. Enfatizaram algumas manifestações de esquizofrenia (mas não outras); as chamadas desordens anti-sociais da personalidade e o abuso de álcool e de drogas. Seguindo a definição de Hodgins, somente 15% dos assassinos apresentam uma desordem mental grave (esquizofrenia, paranoia, melancolia). Há muitas desordens mentais que não alteram o risco de uma pessoa matar alguém. As desordens afetivas, de ansiedade e a distimia não aumentam nem diminuem esse risco. Pessoas com retardo mental tão pouco se diferenciam da população como um todo. Não obstante, são objeto de preconceito e discriminação.
Os autores se concentram nas desordens mentais GRAVES, que dobram os risco de matar dos homens e multiplicam por seis o das mulheres. As conclusões desse grupo sugerem que há variedades e tipos de esquizofrenia e que somente a forma paranoide de esquizofrenia aumenta o risco da pessoa matar alguém.
Lembremos que somente cerca de seis por cento dos homicidas são esquizofrênicos.
E os outros 94%?
Dez por cento têm algum tipo de desordem de personalidade. Porém, 38% dos homicidas são alcoólatras. Nada menos.
Os dados mostram razões para preocupação quando tratamos das desordens anti-sociais da personalidade.
Há muita discordância sobre as relações entre doenças mentais e homicídio. Há consenso em que as doenças mentais são um conjunto heterogêneo de transtornos e desordens, que variam muito uns dos outros, e também têm riscos muito diferentes de levar alguém, junto com outros fatores, a matar alguém mais.
Realço que trato da relação entre essas desordens e o homicídio. Esse estudo trata da representação dessas desordens entre homicidas condenados. Fala do risco, entre os homicidas, de que encontremos pessoas com esta ou aquela desordem e não do risco de que uma pessoa com essa ou aquela desordem mate alguém intencionalmente.
O conhecimento profundo das doenças mentais não é parte do campo das ciências políticas e sociais, nem da Criminologia. Se o leitor quiser se aprofundar nesse campo, deve procurar as contribuições de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas.

Conheça os detalhes desse estudo: Encephale. 2009 Dec;35(6):521-30. doi: 0.1016/j.encep.2008.10.009.

GLÁUCIO SOARES


Nascimento e morte de um drogado

O Novo México é um estado americano. É lindo. Tem várias áreas desérticas muito bonitas. Eu gostei muito de uma cidadezinha meio alternativa chamada Taos, com menos de seis mil habitantes. O Novo México faz fronteira com o México e tem forte influência mexicana, inclusive a comida, da qual sou fã incondicional. Há muitos anos, a Universidade do Novo México estava fortalecendo os Estudos Latino-Americanos. Estavam me sondando para sair da Universidade da Flórida e ir para lá. Porém, eu sofro com alergias, inclusive respiratórias, que podem provocar asma. Em algumas horas ficou claro que não dava. O pó e a poeira do deserto estavam em todos os lugares.
Porém, guardei uma imagem bonita, turística, daquele estado.
Hoje, me chegou uma notícia que mostra uma realidade que os cenários esplêndidos não mostravam.
Há quem não saiba que quando uma gestante se embriaga, o bebê dentro da barriga também toma um porre; quando a gestante adquire uma dependência de drogas, o bebê nasce dependente. Já nasce drogado. Triste, muito triste. Muitos morrem em pouco tempo. Quando nascem, o resultado tão pouco é bom. A dependência que acompanha o bebê desde o período intra-uterino faz com que ele tenha crise de abstinência.
Em Lamadera, um casario à margem da estrada estadual NM 111, uma mulher drogada não conseguia lidar com a crise de abstinência de seu bebê recém-nascido. Desesperada, injetou cocaína no bebê. O bebê, claro, morreu. A droga fez com que aquela mulher, longe de ter o seu papel na maternidade, condição exaltada por quase todos, se transformasse em assassina de seu próprio bebê. Pior: colocou-o dentro de um saco plástico de lixo e jogou o cadáver dentro da lixeira coletiva. Foi presa.
Não sei se esse horror ocorreu ontem ou hoje. Não descobri o sexo do bebê sem nome.
Fica a lição: qualquer alteração bioquímica da mãe provoca alteração no bebê antes mesmo de nascer.
Peço que orem pela alma desse bebê.
Peço que orem, também, por essa mãe. Sei que é difícil.

GLÁUCIO SOARES

O QUE FAZER COM OS CRIMINOSOS?

Essa é uma pergunta que atravessa os tempos. Descrevo uma experiência e apresento umas ideias sobre o custo de diferentes soluções. Somente isso.
Há cerca de dez anos, organizamos o primeiro Seminário sobre os Homicídios no Brasil. Foi em Caruaru, Pernambuco, de 8 a 10 de outubro de 2009, com um pequeno financiamento da SENASP. Outras instituições ajudaram. O programa incluía visitas à penitenciária local. Participavam membros de um grupo de pesquisas que chegaram antes e ficaram depois do seminário entrevistando e estudando aquela penitenciária e os 102 homicidas presos.
Quero contar para vocês algo a respeito da penitenciária, cujo nome oficial é Penitenciária Juiz Plácido de Souza. Durante muito tempo foi uma exceção entre as penitenciárias brasileiras. Comparativamente, a Penitenciária Juiz Plácido de Souza, em Caruaru, teve durante quase uma década níveis baixíssimos de violência interna. Oito anos sem homicídios, sem suicídios, sem rebeliões.
O que diferenciava essa penitenciária de outras, notoriamente mais violentas? Para descobrir, fui diariamente com uma pequena equipe, passando parte do dia (mas não das noites) na penitenciária, entrevistando presos, tentando organizar os
arquivos que, como é comum nas penitenciárias, não havia sido pensado a partir de informações tecnicamente úteis e estavam às moscas.
Caruaru é uma penitenciária fechada; não obstante, muitos presos não queriam a progressão de pena porque isso implicava em ir para outras penitenciárias do estado.
Uma diferença relevante é a do fluxo das informações que chegam à direção. Nessa penitenciária, a então diretora circulava
livremente entre os presos. A diretora, advogada e ex-agente penitenciária, conhecia os presos. Sua “segurança” era feita por outros presos. Em seu escritório encontrei, permanentemente, presos, usualmente solicitando ou até defendendo uma posição ou outra. Em outras penitenciárias, mais perigosas, o diretor se protege, se sente mais vulnerável, e se isola. Se o diretor veio “de fora” do sistema, o isolamento pode ser maior. Cria níveis administrativos que o separa dos presos. Em cada nível, o fluxo de informações é filtrado, como é natural numa burocracia. O que chega ao diretor pode diferir, e muito, da informação original.
Cada nível cria suas próprias redes, onde as opiniões de uns contam mais do que a de outros. O que chega à direção chega muito distorcido. Por isso, um sistema ingênuo de contatos com os apenados também produz melhores informações. É melhor o input para elaborar políticas internas, com jurisdição dentro da prisão.
As orientações da direção, moldada pela Pastoral Carcerária, que foram mantidas e buriladas pela diretora Cirlene Rocha.
Outro aspecto dos mais relevantes para entender a falta relativa de violência na PJPS era a ausência de facções. Em parte isso se deve ao contraste entre a significação, a organização e a luta entre facções que, naquele então, marcavam o Rio de Janeiro, o Norte e o Nordeste, sobretudo o interior do Nordeste. Porém, em parte isso se deve às políticas de controle e de exclusão das facções. Membros de facções criminosas são separados e, se possível, enviados para outras penitenciárias. Uma penitenciária onde todos circulam livremente e se relacionam com todos os demais tem pouco a ver com as penitenciárias nas que os membros de facções em guerra são, necessariamente, mantidos separados uns dos outros. Onde há muitas facções em conflito, como no Rio de Janeiro, a administração é muito mais difícil. Quando as penitenciárias são dominadas por uma só facção o problema passa a ser outro. A facção passa a ter uma fatia considerável do controle sobre os presos, seus membros mais graduados formam redes cujos privilégios atuam como incentivos para uma ampla filiação. Desmantelar as facções dentro das prisões é pré-condição para que o estado efetivamente controle e administre as penitenciárias. Talvez seja uma missão impossível.
Hoje, no futuro, é um pouco mais fácil explicar a paz do que era o presente.
Um fator que não deve ser minimizado é a formação de uma rede institucional com empresas e o setor privado, num sentido amplo. Grupos cívicos em Caruaru se dedicaram – e conseguiram – convencer empresas de que era mais seguro e mais barato absorver ex-presos do que o risco de enfrenta-los na condição de criminosos desempregados esperando para reincidir. Muitas se comprometeram a absorver, e efetivamente absorveram, expresos. O benefício dessa política foi captado nas entrevistas com os presidiários, chamados de apenados. Não foi fácil.
Examinamos 102 homicidas. Seu nível socioeconômico, em geral, e educacional, em particular, era muito baixo. O nível de educação formal dos homicidas era bem mais baixo do que a média estadual e do que a média nacional. Apenas 7% tinham algum segundo grau, a maioria (59%) tinha, apenas, algum primário e 34% não tiveram qualquer educação formal.
Educacionalmente, os homicidas naquela prisão, procedem de níveis educacionais muito baixos.
Preparar os apenados para um emprego depois de soltos é tarefa imprescindível. É difícil convence-los a entrar para programas de capacitação e é difícil mantê-los nos programas.
Vencida essa barreira difícil, é mais fácil garantir um emprego. E as consequências são claras e boas: nas entrevistas semiestruturadas que fizemos, uma das perguntas feitas a todos se referia às cinco coisas mais positivas que os esperavam depois da prisão. Duas se destacavam: a família os esperava e tinham um emprego garantido. Uma terceira, mais distante se referia ao reencontro com Deus e a religião.
Sim, há conversões na prisão.
Sim, há também falsas conversões na prisão.
O emprego à espera e seus esperados efeitos dão relevância ao que proponho chamar de O Enigma de Pastore.
O que é esse enigma?
Ele tem uma estória. Há tempos recebi de José Pastore uma gentil nota na qual expressava um enigma e uma preocupação de interesse para as políticas públicas de segurança. Tínhamos cerca de 25 mil egressos do sistema penitenciário por ano (egressos mesmo, exclusive fugas etc.). Hoje são mais. Dados de pesquisas fragmentadas sugeririam que, por um lado, os egressos que conseguiam emprego reincidiam muito menos do que os que não reincidiam e,
por outro lado, que dados do mesmo tipo sugeriam uma altíssima reincidência entre os egressos, cerca de sete em dez. Não temos dados sólidos que permitam comparar as taxas de reincidência dos egressos que obtiveram emprego com os egressos que não conseguiram. Dados de pesquisas realizadas em outros países permitem concluir que a diferença é grande. Empregá-los, portanto, é de alto interesse para a segurança de todos nós. O enigma: o Brasil criava – naquele momento – cerca de dois milhões e meio de empregos por ano, mas não conseguia empregar 25 mil egressos, um por cento dos empregos criados.
Por quê?
Quem ajudar a resolver esse enigma, ajudará o Brasil, os egressos empregados (e suas famílias) e a si próprio (e sua família e amigos). O que vimos em Caruaru é um passo na solução desse enigma.
Dentro da prisão, há diferenças muito grandes, inclusive de opinião. Naquela prisão, a maioria dos homicidas era composta por assassinos “à antiga”, não vinculados diretamente ao tráfico. As entrevistas com esse grupo revela que achavam que “a garotada do tráfico” seria o grupo que menos aprendeu na prisão. O que, às vezes ingênua e esperançosamente, chamamos de ressocialização, não se aplicaria a eles, com esse nome ou outro qualquer. Voltariam ao crime.
Não pensem que quem avalia bem a Pastoral Carcerária defende a impunidade. Nem pensem que quem a avalia positivamente está “do lado dos bandidos”, é contra a polícia ou só defende direitos humanos para os bandidos.
Recuperar criminosos é tarefa difícil e custosa. Porém, é muito mais caro mantê-los na prisão. E, sem sombra de dúvidas, é muitíssimo mais caro deixá-los nas ruas.
Infelizmente, a Penitenciária Juiz Plácido de Souza mudou. Por razões que desconheço, a diretora foi transferida e a expansão do tráfico e a onda de violência homicida que assolaram o Nordeste mudaram as penitenciárias e seu funcionamento. Passou a ter rebeliões, homicídios e suicídios.
Não obstante, temos que estudar a fundo o que passou em Caruaru. Talvez possamos aprender e fazer nossa parte para reduzir a violência no país.

GLÁUCIO SOARES

Uma entrevista com a diretora do presídio:
https://www.youtube.com/watch?v=ijtf2sEy_Mw

As teias de relações sociais e a recuperação de dependentes químicos

Hoje, 02/06/219, no Fantástico, houve uma discussão da política do atual governo que amplia as razões que justificam o internamento compulsório de “drogados”. Foram feitas inúmeras afirmações de crítica ou de apoio a essa medida, mas não foram apresentados dados de pesquisas, seja os produzidos pela Fiocruz, seja outros, oriundos da grande quantidade de pesquisas realizadas sobre esse tema em vários países.
Quero acrescentar as conclusões de uma pesquisa qualitativa publicada este ano, sobre a influência da teia social do dependente sobre o êxito de diferentes tratamentos.
Trata-se de uma pesquisa muito pequena e de baixo custo, exploratória, que compara a teia social de dependentes com a dos não dependentes. Concentraram as ações em um grupo de dependentes que conseguiram manter a abstinência por, pelo menos, cinco anos.
Foram usadas entrevistas semi-estruturadas.
O olhar sociológico sugere que a riqueza e o caráter positivo das teias sociais ajudam a prevenir diferentes tipos de dependência e, caso uma dependência exista, ajudam a recuperação, a abstinência e a duração da abstinência.
Qual o tipo de relação que a maioria dos entrevistados considerou importante para conseguir a abstinência?
Foram duas: os que participaram do tratamento (médicos, terapeutas, assistentes sociais) e parentes, particularmente irmãos e/ou irmãs.
As influências da teia de relações sociais e terapêuticas não são necessariamente positivas. Há influências negativas, algumas poderosas, capazes de desfazer os avanços dos dependentes.
Essa pequena pesquisa sugere, sem provar, que o efeito benéfico dos esforços para obter a abstenção dos dependentes podem ser multiplicados pela inclusão no universo conceitual e perceptivo, tanto dos dependentes quanto dos que se propõem a ajudá-los, de pessoas relevantes que podem ajudar ou prejudicar a recuperação. Não é possível retirar as teias de relações pessoais, familiares, de amizade e terapêuticas dos dependentes, descontextualizando-os. Uma sugestão apoiada pelos dados dessa pesquisa mostra que os dependentes têm uma teia mais pobre de relações sociais do que os não dependentes. O desenho não permite saber o que veio antes: se a pobreza das relações sociais contribuiu para a dependência; porém, como a dependência provoca rejeição, não é possível excluir a hipótese de que ela empobreça a teia social dos dependentes, ou se as duas variáveis interagem continuamente. Nossa hipótese propõe que os dependentes com teias sociais mais amplas e mais positivas atingem e mantêm a abstinência com mais facilidade.
Mais uma vez, temos que colocar na equação os efeitos deletérios da solidão.
Creio que esse olhar sociológico pode ajudar a aumentar a eficiência dos programas que visam controlar a dependência.

GLÁUCIO SOARES

Saiba mais:
Pettersen H, Landheim A, Skeie I, Biong S, Brodahl M,
Oute J e Davidson L., How Social Relationships Influence Substance Use Disorder Recovery: A Collaborative Narrative Study. Subst Abuse. 2019 Mar 9;13:1178221819833379. doi: 10.1177/1178221819833379. eCollection 2019.

O FUMO DOS OUTROS E VOCÊ

Há muitos anos, na Flórida, um casal de brasileiros fumantes pendurou na porta da sua casa uma nota a respeito do dano que o fumar em casa faz a outros residentes, além dos fumantes. Hoje chamamos essas vítimas de fumantes secundários. A exigência de pendurar a nota foi feita pelo pediatra que tratava as duas filhas do casal, ambas com problemas de asma e outras disfunções respiratórias.

Inusitado. Penduraram a nota, mas não pararam de fumar em casa.

Outro acontecimento inusitado foi uma expressão que ouvi do pai das crianças: somos “fumantes racionais”. Logo percebeu a contradição embutida na expressão. Não obstante, insistiu em usá-la. Usando essa expressão, ele traçava uma linha entre os fumantes irracionais que apestavam residências, e eles, pai e mãe fumantes, que estariam abaixo dessa linha. Acima ou abaixo, as filhas tinham asma e bronquite, ao que tudo indica, reativas à intoxicação diária dentro de casa.

No meu entender, essa linha imaginária tinha uma função: reduzir a culpa dos pais fumantes e mascarar sua condição de dependentes químicos.

l Dependentes da nicotina.

Hoje, uns vinte anos mais tarde, não há como manter a linha imaginária. Pesquisas e mais pesquisas demonstraram o dano que o fumo de alguns produz em outros.

Inclusive filhos e filhas.

Inclusive ainda dentro da barriga da mãe.

O fumo afeta uma ampla área da saúde humana, inclusive o risco de câncer. Segundo a American Cancer Society, o fumo do tabaco é composto por milhares de substâncias químicas, das quais pelo menos 70 são cancerígenas. As principais: nicotina (a droga que provoca o vicio) é um dos produtos químicos mais agressivos da fumaça do tabaco; cianeto de hidrogênio; formaldeído; chumbo; arsênico; amônia e até elementos radioativos como o urânio. Tem mais: benzina; monóxido de carbono; nitrosaminas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (PAHs), etc. etc.

O dano começa quando o bebê nasce?

Não. Começa muito antes. As mães fumantes danificam seus filhos ainda na barriga. Fumar durante a gravidez afeta a mãe e o bebê antes de nascer, durante o parto, e depois do parto.

Todos os venenos que são inalados pela mãe fumante (primária ou secundária) entram na corrente sanguínea e vão direto ao feto.

Quais as consequências?

São muitas, muitas. Menciono algumas:

l Reduz a quantidade de oxigênio disponível para as mães e os bebês;

l aceleram os batimentos cardíacos do bebê;

l aumenta a taxa de natimortos;

l aumenta a taxa de abortos espontâneos e mais. 

E se a gestante for uma fumante secundária? Lembremos que fumantes secundários não fumam, mas inalam a fumaça do cigarro aceso e a exalada por um fumante. 

São muitas as consequências para a gestante e para o bebê dentro da sua barriga.

Mesmo quando o fumante é um “fumante racional”?

Também!

De cara, diminui a quantidade de oxigênio disponível para a gestante e para o bebê; aumenta os batimentos cardíacos do bebê e várias consequências encontradas nos bebês de gestantes que fumam: taxa mais elevada de natimortos e de abortos não intencionais; taxa mais elevada de que o bebê seja prematuro; reduz o peso do bebê ao nascer; aumenta o risco de que o bebê tenha doenças respiratórias, de nascer com defeitos, da síndrome da morte súbita e mais.

Todos os riscos aumentam com o número de cigarros fumados diariamente.

Não há número “seguro” de cigarros que podem ser fumados;

Não existem “fumantes racionais”. É mito.

Outro mito é o de que cigarro aceso, mas não fumado, causa menos dano à saúde dos demais. É o contrário.

O fumante retém algumas das substâncias maléficas; o cigarro aceso no cinzeiro joga tudo direto no ar.

Claro está que outras condições pesam, alteram a probabilidade de causar essas inúmeras doenças. Ao ar livre, a fumaça se dissipa muito mais rapidamente. Imaginem, ao contrário, os que dormem trancados, com janela fechada…

Em 2009, um relatório da Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer concluiu que são fortes as evidências que demonstram que a implementação de leis de controle do fumo reduzem as doenças cardíacas;

Em 2010 a Cochrane efetuou uma revisão de doze pesquisas que revelou a existência de uma redução nas internações hospitalares por problemas cardíacos depois da implementação de legislação de controle do fumo.

E maconha?

Desculpem, mas as pesquisas indicam que os efeitos da maconha podem ser ainda mais acentuados.

Um exemplo:

Uma pesquisa dirigida por Matthew Springer, professor da Universidade da Califórnia, comparou os efeitos do fumo secundário com cigarros e com maconha. Claro que não poderiam usar seres humanos como cobaias. Usaram ratos. Os que foram submetidos a um ambiente carregado com fumaça de maconha levaram mais tempo até que as artérias, artificialmente comprimidas pelos componentes da fumaça voltassem ao seu diâmetro normal. Quando os ratos eram expostos à fumaça de cigarros, suas artérias levavam trinta minutos para voltar ao normal; quando a fumaça era de maconha, levavam noventa minutos.

Isso, a despeito da maconha produzir um número menor de componentes químicos.

E quais os efeitos das políticas públicas em relação às doenças coronárias? Em 2010, fizeram uma meta-análise de 17 estudos que pesquisaram os efeitos das políticas públicas sobre a redução nas doenças coronárias e a conclusão, estatisticamente significativa, mostra que houve redução.

Tem mais: esses efeitos saudáveis aumentaram ao longo do tempo.

Em 2012 foi realizada uma pesquisa sobre o efeito de políticas de controle do fumo sobre a saúde de idosos (65 anos e mais). Quais eram essas políticas? Proibições de fumar nos locais de trabalho, nos bares e restaurantes, que atingiam, pelo menos, 50% da população do condado.

Quais foram as consequências?

l Uma redução de 20% nas internações hospitalares devido a ataques do coração e

l Uma redução de 11% nas internações devido a doenças crônicas de obstrução pulmonar.

E no Brasil? Embora desde o início das pesquisas sistemáticas, na década de sessenta, já fossem conhecidos os benefícios de políticas que protegessem não-fumantes (e fumantes também) em locais públicos, um senador engavetou o projeto durante sete anos. Conversei com uma assistente do senador, uma fumante, que condenou o projeto na base dos direitos dos fumantes, que via como um direito absoluto e inalienável. Continuou, dizendo que o número de vidas salvas era ínfimo. Com base em algumas considerações, estimou que o “ínfimo” número de vidas salvas anualmente era cerca de cinco mil. Balançou um pouco, mas insistiu em sua posição e a conversa terminou em pouco tempo.

Cinco mil vidas…

Cada ano; todos os anos.

Não foram suficientes para aquela fumante respeitar os não fumantes.

Você, não fumante, poderá ser hostilizado se expressar qualquer restrição ao fumo, inclusive ao “direito” dos fumantes de fumar no seu nariz. Uma das descrições agressivas da sua postura, talvez a mais comum, é “frescura”.

Em verdade, é frescura sim. Nós queremos ar fresco para respirar.

Sem qualquer tipo de poluição.

Defenda sua saúde e a sua vida! Com o exemplo; com a palavra; com a mobilização.

Gláucio Soares IESP/UERJ

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O dano causado por um modelo que soma zero

Estamos vendo o que significa um modelo que soma zero. Em várias administrações, em países diferentes, quando medidas que reduziram recursos, cargos etc. foram implementadas, as reações foram semelhantes às que estamos vendo. Os que estavam ameaçados de perder algo – recursos orçamentários, prestígio, status de ministério ou de secretaria especial etc. – protestaram e continuaram protestando. O modelo que soma zero surgiu quando foi tomada a decisão de reduzir o número de ministérios e enfrentar o rombo fiscal. Os protestos já surgiram em muitas áreas, como, por exemplo, a relacionada à cultura, ou no caso, também em andamento, da mudança da Secretaria de Direitos Humanos que possivelmente seria transferida para o Ministério da Justiça. Em um debate interno, que estou acompanhando, surgiu a pergunta necessária sobre o funcionamento de um órgão do governo. No debate, que é essencialmente político, estão sendo debatidos os ganhos e as perdas num discurso em que o órgão é tratado em forma abstrata. É um debate político sobre alocação de recursos, poder e prestígio. Nesse debate, que sempre surge quando há cortes de algum tipo, inclusive aqueles que tem a ver com símbolos de poder, há contraste entre a realidade, o órgão como ele é, e a versão publicitária, divulgada, pública, aperfeiçoada, idealizada, que não existe. A realidade desaparece. A versão idealizada é afirmada e reafirmada, soberana. Quando foi colocado o tema da funcionalidade, de onde o órgão funcionaria melhor, voltou ao palco o órgão como ele é. Em todos os casos, é patente o que está em jogo para os grupos de pressão: não é um projeto para o país, certamente não é um projeto social, é a política simples de defesa dos interesses próprios através da pressão política.

Às vezes a disparidade entre o projeto anunciado (e desejado) e o processo que realmente acontece, é surpreendente. O exemplo mais ameaçador é a escolha de André Moura para líder do governo na Câmara dos Deputados. Para mim, mostra, apenas, que quem domina a Câmara é o baixo clero e não o governo. Se assim for, talvez o homem mais influente naquele recinto continue a ser Eduardo Cunha. Um horror.

Qual o problema desses procedimentos, inclusive dos legítimos protestos numa situação de evidente falta de recursos para satisfazer a todos? O principal problema é que o somatório dos êxitos de grupos específicos não significa o maior benefício para a maioria dos excluídos. Significa, apenas, que os grupos mais poderosos, mais influentes e melhor organizados, por exemplo, os sindicalizados, juízes, promotores, deputados e senadores, os que trabalham para o estado, entre muitos outros, terão suas necessidades atendidas primeiro, antes de que a maioria dos que necessitam de atendimento básico, particularmente nas áreas da saúde, da educação e da segurança pública, seja atendida. Dada a magnitude do rombo fiscal, não há como ser otimista e os recursos necessários para os despossuídos virão por último. Último pode significar muito tempo.

Na política que responde, apenas, aos grupos de pressão organizados, os mais pobres e excluídos do poder, sem influência, serão os mais prejudicados, os últimos que serão atendidos.

É a política do cotidiano, do quem pode, pode, quem não pode sofre.

Gláucio Soares

O TRISTE FIM DE UMA VÍTIMA DE MUITAS VIOLÊNCIAS

Columbine é um nome que ficou marcado na história da violência. Em 20 de abril de 1999, há pouco mais de vinte anos, dois estudantes da última série da Columbine High School, no Estado de Colorado, chamados Eric Harris e Dylan Klebold, mataram doze estudantes e um professor. Os assassinos cometeram suicídio.
Houve muitos protestos nos Estados Unidos, mas protestos só se transformam em leis através do Legislativo americano. E o lobby das armas, a NRA (National Rifle Association) tem uma política agressiva com dois alvos: apoiar os deputados e senadores armamentistas e apoiar os adversários dos desarmamentistas. Essa segunda estratégia política não faria muito sentido num sistema proporcional, mas é muito eficiente num sistema majoritário, onde somente um deputado é eleito em cada distrito. No Brasil, a indústria e o comércio armamentistas obtém melhores resultados elegendo políticos favoráveis do que impedindo a eleição de opositores. Apoiaram vários políticos importantes eleitos em 2018.
O total das vítimas de Columbine é maior do que o número de pessoas que morreram no local ou pouco tempo depois, no hospital. Para cada vítima direta, há um número maior de vítimas ocultas, parentes e amigos dos que morreram ou foram feridos. A dor provocada pela violência é muito maior do que a que os olhos podem ver na cena do crime e dura muito tempo -anos, muitos anos, décadas.
O professor assassinado, William “Dave” Sanders, salvou muitas vidas. Foi o terceiro a ser atingido e o último a morrer. Ficou conhecido pela sua coragem e pelo seu sacrifício. Mesmo ferido, continuou protegendo e orientando os estudantes. Uma estimativa coloca em mais de cem o número de vidas que Dave salvou. Mas, coragem e glória à parte, o professor tinha uma família: deixou uma viúva, quatro filhos e filhas sem pai e cinco netinhos e netinhas, que perderam o vovô Dave. Não há estatísticas para a dor dessas pessoas.
Além das vítimas ocultas, relacionadas por laços de família e amizade com os mortos e feridos, há outras vítimas não computadas. Houve 21 feridos na escola e mais três feridos enquanto fugiam do massacre. O trauma psicológico não fecha junto com as feridas das balas.
Um dos feridos era Austin Eubanks. Seu melhor amigo, Corey DePooter, morreu ao seu lado. Já no hospital, para combater a dor dos ferimentos, teve que tomar medicamentos, analgésicos fortes e, depois, opioides. Virou dependente. Conseguiu superar a dependência e se tornou um ativista contra as drogas. Mas os danos ao seu corpo e mente eram profundos. Faleceu há pouco, aos 37 anos. Viveu quase meio século a menos do que a estimativa para uma pessoa normal nascida no mesmo ano nos Estados Unidos. Não há estatísticas para esse tipo de vítimas.
Vivemos num momento, no Brasil, em que a indústria das armas tenta se aproveitar de um momento politicamente favorável para enfraquecer o Estatuto do Desarmamento.
Por que fazem isso?
Por idealismo?
Por dinheiro. Querem ganhar mais dinheiro às custas das nossas vidas.
Simples assim.

GLÁUCIO SOARES

A gênese de criminosos violentos

É possível prever, desde a infância e a adolescência, a criminalidade adulta, particularmente a criminalidade violenta?

Em parte. Alguns comportamentos agressivos já na infância são preditores da criminalidade muitos anos depois; a influência de outros se dilui através dos anos e surgem outras influências, da pré-adolescência em diante. Três pesquisadores da Universidade de Michigan fizeram uma pesquisa longitudinal que acompanhou 856 crianças que estavam na terceira série em 1959/60. A maioria dessas crianças era branca e de classe média.

Como aferiram a agressividade e outras características das crianças já na terceira série? Em primeiro lugar, levaram em sério a opinião dos colegas. Foram os colegas que definiram o nível de agressividade de cada um, assim como a popularidade dos demais, se eram queridos ou não. Evidentemente, os pesquisadores buscaram outras informações e usaram outras fontes. Mediram o QI das crianças e o comportamento e crenças dos pais. Não deixaram a família de fora.

Quais as características das crianças mais agressivas? Antes, porém, entendamos que não se trata de ter ou não ter essas características, mas de ter mais ou menos dessas características. Assim, na média, as crianças agressivas eram menos queridas pelos seus coleguinhas. É legítimo perguntar se eram menos queridas porque eram mais agressivas ou se eram mais agressivas porque eram menos queridas, ou os dois. Também eram as que menos expressavam culpa.

Os pais das crianças agressivas também eram diferentes dos pais das crianças que não foram definidas como agressivas pelos colegas. Para começar, acreditavam mais em castigo e punição.

Rejeitavam mais seus filhos e filhas que, por sua parte, não se identificavam com a imagem que pais e mães tinham de si mesmos. Já havia discrepâncias sérias quando os meninos tinham oito anos de idade.

E o crime? Há fatores, presentes aos oito anos, que influenciaram o risco de cometer crimes durante mais de duas décadas? Os autores compararam as características de dois grupos: 1) 68 meninos que tinham sido presos, pelo menos uma vez, até completarem 30 anos (vinte e dois anos depois) e 2) 264 meninos que nunca tinham sido presos.

Lembrando que as informações se referem a uma população majoritariamente branca e de classe média, apresentamos a descrição, feita pelos autores, da combinação de fatores que mais pesou na produção de adultos com experiência prisional: vieram de famílias grandes, com maior número de irmãos e irmãs, com um nível de educação mais baixo do que a média, vivendo em áreas mais pobres. Nesse ponto, as conclusões dessa pesquisa estão de acordo com um número grande de pesquisa: as variáveis criminogênicas são semelhantes.

Porém, mesmo entre os membros dessa sub-população com características que facilitam a formação de criminosos, o risco de cometer crimes baixa muito entre os filhos de famílias que frequentam uma igreja. Essa é uma das variáveis individualmente mais poderosas (p<0,002), juntamente com a agressividade do menino aos oito anos.

E os crimes violentos? Afinal, são diferentes dos demais. Vinte e cinco dos meninos foram presos por, pelo menos, um crime violento nos 22 anos seguintes. As regressões mostram que das variáveis relativas às crianças quando tinham oito anos, um QI baixo e uma alta agressividade eram estatisticamente significativas, assim como variáveis relacionadas aos pais e à família: a frequência a igrejas  dos pais continuava sendo um relevante fator protetor, mas o número de irmãos e irmãs tinha um efeito negativo. A educação dos pais continuava a influenciar o futuro dos filhos vinte e dois anos depois: quanto mais educados os pais, menor o número de filhos que cometeram crimes violentos. Pais e mães que pais e mães com uma ideologia punitiva aumentam o risco e, como esperado, pais e mães com um histórico de criminalidade também aumentam esse risco. Famílias marcadas pela discórdia e pelo conflito também aumentam o risco de que os filhos cometam um crime violento.

É possível avaliar o peso de cada um desses fatores: a regressão logística utilizada pelos autores revela que a cada aumento de um desvio padrão na agressividade aos oito anos aumenta em 41% o risco de cometer um crime violento nos 22 anos seguintes; já o aumento de um desvio padrão na frequência à igreja reduz esse mesmo risco em 34%.

Muito do que uma criança é, faz e sofre aos oito anos continua influenciando seu comportamento décadas depois.

GLÁUCIO SOARES IESP/UERJ