Arquivo da categoria: a responsabilidade dos pais

Caçando seres humanos

Alguns acontecimentos recentes reacenderam o receio da volta de novo tipo de vigilantismo (na sua acepção mais ampla) no nosso país. Sabemos pouco sobre essas ações coletivas. Quando surgem e contra quem se dirigem? Elas não aparecem no vazio. Combinam no perfil dois tipos de agressor, o mais mais ameaçador e o do que tem maior índice (percebido) de impunidade. Não basta um: os dois elementos têm que estar presentes. A impunidade dos “irrelevantes”, daqueles que não são percebidos como ameaças diretas à vida e à propriedade do interessado, dificilmente produzirá justiceiros. Há muitos exemplos: a percepção da impunidade absoluta dos responsáveis por pesados desvios do patrimônio público, ou pela impunidade relativa dos condenados no “mensalão”, passaram anos em liberdade depois dos crimes, e a constatação de que mesmo na prisão gozam de regalias não acessíveis aos demais presos, pode causar indignação, mas não medo. Mas há o medo de outros crimes. O medo é um grande estímulo à violência, e a população brasileira tem medo. A metade da população brasileira tem medo de morrer assassinada! O medo não é obrigatoriamente proporcional ao crime. Em vários países europeus, o medo dos idosos e das minorias é maior do que o risco real. E qual a subpopulação que causa muito medo cuja impunidade seria garantida pela própria lei? Os adolescentes. Parte substantiva da violência poderá ser dirigida contra adolescentes e homens jovens. A população não concorda com vários dispositivos do ECA, começando pela maioridade penal. Em abril de 2013, 93% dos paulistanos defendiam sua redução; para 45% a idade mínima deveria ficar entre 16 e 17 anos (atualmente são 18) e um terço achava que infratores adolescentes entre 13 e 15 anos deveriam ser presos como adultos.

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A Pesquisa entre Paulistanos sobre a Idade Mínima Penal

É uma postura nacional: uma pesquisa do Senado realizada em 2012 revela que 89% da população favorece a redução da maioridade penal.

clip_image004[i] Ao sexo e à idade, se juntam outros fatores como etnia e raça, local de residência, aparência, roupas e mais. O perfil, um instrumento da análise criminológica, pode se transformar num fundamento de expressão do preconceito de “justiceiros”. Porque digo expressão do preconceito? Porque antes de qualquer dado ou informação precisa sobre o(s) autore(s) do crime já se formou uma presunção de culpa aplicável a todos com perfil semelhante, o que aumenta o risco de inocentes serem seviciados e/ou mortos.

A impunidade é outro poderoso fator na gestação de grupos de “justiceiros”. Quando existe a percepção de que essa impunidade é ilegítima, ainda que legal, se fortalece a crença de que o “sistema” não é capaz de fazer justiça quando os autores tiverem esse perfil. “Se o sistema não faz justiça, nós faremos”… Essa percepção pode orientar a punitividade ilegal, pré-definindo o tipo de infrator a ser punido. No Brasil, a população considera um privilégio indevido a proteção derivada da idade mínima penal aos menores de 18 anos. Qual o resultado: não saem à caça de criminosos, o que já seria muito negativo; saem à caça de pessoas com o perfil criado: homens jovens ou adolescentes, pobres, predominantemente negros, moradores de comunidade etc. Caçam humanos que pareçam criminosos. Há outros fatores que foram esquecidos nas análises desses eventos recentes; alguns deles são óbvios. A extensão do crime no país é uma condição que favorece o surgimento de grupos de “justiceiros”. O vigilantismo espontâneo (como diferente do induzido) se dá principalmente em sociedades com altas taxas de crimes, particularmente os violentos, onde há falência das instituições politicas e sociais, sobretudo da polícia e da justiça. A Lei de Gerson é muito arraigada, sendo grande o número dos que querem “se dar bem”, mesmo à custa do interesse legítimo de outros. É a morte da ética. Caldo de cultivo para movimentos redentoristas, de “reconstrução” da sociedade. As correlatas dos crimes violentos são multiplicadas pelo preconceito, levando ao lado aberrante da técnica dos perfis. Homens que preencham essas características são suspeitos – antes e depois de qualquer fato. Essas predisposições preconceituosas podem se transformar num sistema de punições preventivas, erradas e injustas. Não queremos Damiens seviciados pela população. A história está repleta de massacres preventivos ou punitivos baseados em informações falsas. Esperemos que não aconteçam no Brasil.   [i] Travis Hirschi e Michael Gottfredson, Age and the explanation of crime, em American Journal of Sociology, Vol. 89, No. 3, Nov., 1983.

GLÁUCIO SOARES    IESP-UERJ

  Versão preliminar publicada no Correio Braziliense de 2 de fevereiro de 2014       a morte de jovens delinqüentes, jovens assassinos, preconceito, perfil de homicidas, justiceiros, vigilantes, execuções sumárias, falência do judiciário e da polícia   Caçando seres humanos

A Prescrição, o Japão e nós

A Prescrição, o Japão e nós

 

O Brasil tem algumas semelhanças com o Japão no que concerne suas leis. Estamos preocupados em declarar que o Estatuto da Criança e do Adolescente é avançado. Avançado? O que faz com que seja avançado? A senadora Patrícia Gomes declarou que reduzir a idade penal é “um retrocesso”. A civilização caminha para o aumento da idade penal? A senadora não diz porque. É retrocesso e pronto! Esses termos, “avançado” e “retrocesso” estão presentes em muitas das discussões a respeito de mudanças na legislação penal.

Esse pensar supõe evolucionismo. “Avançado” e “retrocesso” não se referem ao tempo, mas a uma visão evolucionista e linear que coloca uns países como “avançados” e outros como atrasados”.

Já aconteceu, imaginem, com o Japão. Morikazu Taguchi, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Waseda, em Toquio, afirma que a prescrição, um conceito legal amplamente endossado, foi adotada no Japão no fim do século XIX, durante a restauração Meiji. O Japão sofria de um fabuloso complexo imitativo: sem leis ocidentais não teria lugar entre as nações modernas. Adotou, então, muito do sistema legal francês. Porém, a derrota da França na guerra com a Prússia fez o Japão se virar para a Alemanha. Segundo Taguchi, se era dos países desenvolvidos, era bom para o Japão. Recentemente o Japão alterou a prescrição nos casos de homicídio de 15 para 25 anosPor quê?

Porque as inadequações da lei eram claras. Alguns casos causaram protestos e celeuma.

  • Uma aconteceu nos municípios (prefeituras) de Tokushima e Kagawa. Houve uma tentativa de extorsão contra uma empresa que fabricava doces, a Lotte Co. em 1987-88. Em agosto de 87, 83 doces foram encontrados num kinder, cheios de pesticida e cianureto. Quinze anos depois, prescrição. Muitos acharam que não deveria haver.
  • Norimitsu Onishi, escrevendo para o The New York Times em 2006 nos fala da revolta ao redor do assassinato de uma jovem. Em 2005, Sumiko Namai ofereceu $20,000 a quem encontrasse o assassino de sua filha, Michie, na esperança de que se encontrasse o assassino antes da aplicação do prazo além do qual não se poderia processá-lo, muito menos puni-lo. Se o assassino, que esfaqueou a jovem e a enterrou no gelo, estava vivo poderia se apresentar, assinar uma confissão e sair da delegacia, livre para sempre de punição por aquele crime. Havia um suspeito, mas muitas dificuldades em demonstrar a culpa. Takao Kimei, um policial que investigou o caso declarou que havia marca de sangue e impressões digitais que apontavam para Ryoji Nagata, um  ex-colega da vítima, que morava perto dela.
  •  De mais impacto foram as ações de uma organização fanática, Aum Shinrikyo, organizou ataques terroristas no dia 20 de março de 1995. Foram cinco atos no metrô de Tóquio. Morreram doze pessoas e perto de mil foram hospitalizadas e mais de cinco mil tiveram que ser medicadas. Oito dos acusados foram condenados à morte por enforcamento (aliás raramente se menciona que o Japão tem pena de morte). Ainda há foragidos que escaparão à justiça em três anos. (A alteração da prescrição não é retroativa). Como as pessoas atingidas foram muitas, a reação é grande.
  •  A prescrição dos crimes cria situações-limite: Kazuko Fukuda matou outra pessoa que trabalhava no mesmo bar em ar 1982. Depois se escondeu durante quase 15 anos, mudando de nome e fazendo até cirurgia plástica. Onze horas antes da prescrição foi presa e condenada à prisão perpétua. Claro que não faz sentido. Se a assassina fosse um pouco mais hábil (ou a polícia um pouco menos eficiente) ela estaria livre – para sempre – em algumas horas; como isso não aconteceu, passará o resto da vida na cadeia. Onze horas fizeram a diferença. É difícil imaginar que a justiça possa depender de eventualidades desse tipo.

A prescrição pode ser menos (ou ainda menos) recomendável em um lugar do que em outro? Pragmaticamente, sim. Em 2000. Em 2004, a lei poderia ser aplicada a 37 pessoas em todo o Japão. Num país com uma taxa de homicídios que raramente passa de um por cem mil habitantes (tem oscilado entre 0,5 e 0,6), o risco para a cidadania é consideravelmente menor.

No Brasil, a prescrição por homicídio significa deixar livres e tranqüilos mais de cem assassinos por dia. Livres para continuar vivendo a vida tranquilamente,  direito que eles negaram às suas vítimas. Direito a uma liberdade que pode levar a novos delitos, inclusive a novos homicídios. Livres para escapar da justiça pela morte de um ou mais seres humanos.

Em nome de quê?

A cidadania responde positivamente do Disque-Denúncia

Recebi do Zeca Borges:

Transmito um dos vários agradecimentos que temos recebido de moradores do Rio de Janeiro, e que emocionam nossos atendentes.

Atenciosamente,

Zeca Borges

“…disse que ele e vários moradores dos Bairros Taquara e Jacarepagua,haviam feito várias denúncias sobre as ações de milicianos e a falta de policiamento na localidade, e que inclusive uma cabine da polícia militar que se localiza próximo a uma capela na Estrada do Rio Grande, havia sido ocupada por milicianos, e que recentemente o comando da PMERJ, retomou o controle e foram feitas várias prisões importantes, a cabine foi reativada com patrulhamento intensivo na localidade. Agradeceu a toda a equipe do Disque-Denúncia, ao comando da Polícia Militar e aos Policiais Militares lotados no 18º BPM. Por fim disse que sabe que pode contar com a Central Disque-Denúncia RJ e que falava em nome das mães das crianças, e em nome dos trabalhadores que necessitam se ausentar de suas casas a noite.”

GLÁUCIO SOARES     IESP-UERJ

Matando bebês

O homicídio de crianças é considerado o crime mais cruel e repugnante por várias culturas. Alder e Polk (2001) escreveram um livro sobre esse tipo de homicídio, Child Victims of Homicide .  Compararam a Austrália, o Reino Unido e a América do Norte, concluindo que as crianças representam entre dez e vinte por cento do total de homicídios nessas áreas. Não há “o” homicídio: há tipos variados de homicídios e as análises tendem a se concentrar seja na vítima, seja no algoz, seja na relação entre eles. Nos países com sistemas policial, judicial e estatístico muito deficientes, como é o caso do Brasil, estudar as vítimas é mais fácil do que os autores e as relações entre estes e as vítimas. Por isso, estudos desse tipo são muito mais numerosos. O primeiro ano de vida é o de maior vulnerabilidade e, nesse tipo de homicídio, os pais, particularmente a mãe, respondem por uma percentagem muito alta do total de assassinatos. Há uma subcategoria, os neo-naticídios, cujos autores são quase sempre as  mães.

Há um dia mais vulnerável na vida de uma criança do que todos os demais: o primeiro. É no primeiro dia de vida que mais crianças são assassinadas.

O infanticídio é uma prática antiga, mais do que documentada na antiguidade – na Grécia, em Roma, no Egito, em Israel, na China e muitas outras civilizações. O infanticídio, particularmente o feminino, ainda é praticado extensamente na Índia.

O infanticídio é um fenômeno mundial: Em dezembro de 2008, o renomado Australian Institute of Criminology  informou que em 2006/7 houve 752 homicídios cujas vitimas tinham idade inferior a 18 anos. Das vítimas com menos de dez anos, 91% foram mortas pela mãe, pelo pai, madrasta ou padrasto, sendo que alguns pelo casal[1]. Houve um aumento percentual em relação a 1989-90, porque esses homicídios permaneceram estáveis, mas os demais homicídios como um todo diminuíram.

Alder e Polk defendem que para poder explicar esses homicídios, é necessário começar separando os autores em dois grupos: familiares e não familiares. Uma segunda divisão separa autores homens de mulheres. A combinação dessas categorias indica dinâmicas muito diferentes, motivações diferentes, tipos diferentes.

Os autores argumentam contra  a teoria dicotômica que divide os homicídios de acordo com a idade, sendo os infanticídios os casos em que a vítima é menor do que uma certa idade que define um adulto a partir de um critério legal e não sociológico, nem psicológico ou criminológico. Criticam, também, a visão que defende, apenas, a substituição do critério dicotômico por um continuum. A justificativa do continuum  é múltipla: há, primeiro, uma redução no número de mortos na taxa de vitimização até a puberdade ou a juventude, quando os homicídios voltam a crescer. Porém, a autoria de pais e, sobretudo, mães, nesses homicídios é muito menor.

Alder e Polk inserem essas mudanças num contexto maior, do qual as relações sociais e interpessoais das crianças e, depois, dos adolescentes fazem parte. A exposição deles aos familiares diminui, ao passo que aumenta a exposição a terceiros, não-familiares. As suas atividades também mudam, se diversificam. Crescem, em muitos países, as mortes por acidentes, drogas e suicídios e, em países como o Brasil, na guerra do tráfico.

Muitos autores reservam o último capítulo de seus livros para a apresentação de uma teoria; Child Victims of Homicide não segue esse padrão. Os autores constatam e enfatizam que os infanticídios incluem tantas características, combinações e tipos diferentes que não há lugar para uma teoria unificadora.

Infelizmente, a compra e venda de órgãos e tecidos de recém-nascidos não escapou ao crime, como vem denunciando a jurista Michelle Oberman da Santa Clara Law.

Pior, o infanticídio múltiplo também é comum. Tomando exemplos franceses, Dominique Cottrez matou oito bebês seus em Villers-au-Tertre no norte da França entre 1989 e 2006; também em 2010, a justiça francesa condenou Celine Lesage na Normandia por ter assassinado seis dos seus próprios bebês. Às vezes, pai e mãe participam desse tipo de assassinato múltiplo: usando mais um exemplo francês, em 1984 o casal Jean-Pierre Leymarie e Rolande foi preso porque mataram sete de seus bebês. Outro caso notório, esta vez nos Estados Unidos, foi o de Andrea Yates que afogou suas cinco crianças na banheira.

A situação no Brasil, país com alta taxa de sub-registros, é pouco conhecida, mas evidências não sistemáticas sugerem que essa triste prática é comum, como é, mundo afora. Uma violência indescritível contra quem não pode se defender e ainda não viveu.

GLÁUCIO SOARES

Professor e Pesquisador, IESP-UERJ


[1] Ver Crime facts info no. 183, Child victims of homicide.

 

Melhora o Disque-Denúncia

O Disque-Denúncia melhora continuamente. Agora é possível acompanhar as ocorrências em tempo quase real no Twitter. Entre e veja que, sim, é possível melhorar e o Rio de Janeiro tem jeito!

http://t.co/lt4kt4f

GLÁUCIO SOARES


A pena de morte nos Estados Unidos

Ter valores únicos não é uma peculiaridade americana: todos os países têm valores que formam uma configuração única. O que confere excepcionalidade aos Estados Unidos? Serem tão diferentes dos demais países que compunham o chamado Primeiro Mundo. Constatada a força homogeneizadora da industrialização, da urbanização e da globalização, o país que liderou esses processos durante décadas (e ainda exerce considerável liderança) diverge da média. Essas forças não conseguiram mudar muito a herança cultural americana, levando Lipset a, em 1996, publicar American Exceptionalism onde forneceu dados para demonstrar essas diferenças: filho de sindicalista, enfatizou que menos de metade dos americanos sindicalizados favoreciam a obrigação do governo em prover um nível de vida decente para os desempregados. Na Alemanha, Inglaterra e Itália a variação era entre dois terços e três quartos.

Os impostos são vistos como um inimigo. Roosevelt se chocou com uma muralha para criar o imposto de renda. Mesmo antes de Reagan (1981), os Estados Unidos tinham impostos mais baixos, um “welfare state” muito limitado, quase não tinha indústrias públicas e não havia uma só universidade federal. .Somente 31% do PIB americano vinha dos impostos, em contraste com 52% na Suécia e 48% na Holanda.

Essas seriam parte e decorrências do “credo americano”: governo pequeno, individualismo (que inclui responsabilidade irrestrita pelas próprias ações) e igualdade de oportunidades (lembro: não igualdade, igualdade de oportunidade) entre outros. Esse é um credo político que se chocou (e continua se chocando) com valores da sociedade americana.

E o que têm o credo político e os valores da sociedade americana a ver com a pena de morte?

A maioria dos americanos a favorece. Porém, o apoio à pena de morte varia muito. Para compreender a variação devemos conhecer a muralha racial do país, assim como seu extremo individualismo. Em 1992, Andrew Hacker, publicou um livro, Two Nations, Black and White, Separate, Hostile, Unequal, ponto de partida para quem quiser entender o apoio (ou rejeição) à pena de morte. Há outros fatores. O cerne do credo americano inclui a igualdade da oportunidade, governo pequeno, dependência de si mesmo, e iniciativa individual. Indivíduos são premiados e punidos pelo que fazem. Indivíduos competem pelos benefícios distribuídos pelo país; para que a competição seja justa, devem ter chances, oportunidades, iguais. Os americanos não são contra a desigualdade, são contra a desigualdade já na origem. Porém, sabem que esse é o calcanhar de Aquiles da doutrina. Há uma desigualdade de oportunidades que começa antes do nascimento,uma desigualdade estrutural: negros nascem em famílias mais pobres, em partes das cidades mais pobres, nas regiões mais pobres, estudam em piores escolas. A família, influente, ficou de fora do credo político. Entra nas analises, mas dividindo a teoria. As famílias negras transmitem mais mais desvantagens: menos estáveis, com mais filhos, com menos tempo para educar em casa, com desemprego mais alto e muito mais. E a maioria com renda mais baixa. Esses dados provocaram uma cisão ideológica: os defensores à outrance da igualdade de oportunidades defendem a tese de que crianças e pré-adolescentes negros não devem ser prejudicados pelos erros e deficiências de gerações anteriores e propõem medidas corretivas; seus oponentes afirmam que a sociedade não pode ser penalizada pelos erros de outros, brancos ou negros.

Porém, a igualdade de oportunidades, ainda que imperfeita, exige a responsabilidade individual. Cada um deve pagar pelo que faz. Esse pensamento influi sobre a responsabilidade penal. Os americanos são uma sociedade profundamente cristã em seus valores básicos, inclusive o livre arbítrio. Há contradições e hipocrisia, mas o pensamento dominante é cristão e aposta no livre arbítrio.

Muitas sociedades, inclusive as latino-americanas, são católicas e, teoricamente, também acreditam no livre arbítrio. Não obstante, nelas entra em ação outra variável: são sociedades mais dependentes da elite educada, na qual explicações deterministas de vários tipos vicejam e marcam a cultura e as leis. Gera um contraste com as sociedades anglo-saxãs, onde a idéia de que alguém seja socialmente obrigado a cometer um crime é absurda. A inimputabilidade existe na legislação, mas não entrou pelo lado social ou econômico, e sim pelo lado psicológico e psiquiátrico. Lembro que a idade mínima legal nos Estados Unidos e na Europa é muito mais baixa do que no Brasil: sete anos na maioria dos estados americanos, oito na Escócia, dez na Inglaterra, em contraste com 18 no Brasil (assim como era na Colômbia e no Peru).

.E a pena de morte? Há dados relativos à própria pena de morte, sem os que não entenderemos sua sobrevivência, mesmo considerando o credo político americano:

  • Ela não existe em todos os estados (há em 35; não há em 15);
  • .Não há uma avalanche de execuções (houve 1816 execuções desde 1976, média de 52 por ano, entre um terço e a metade das pessoas assassinadas em um só dia no Brasil);
  • As execuções são regional e estadualmente concentradas: 88% ocorreram no Sul, noTexas e na Virgínia;
  • Tem um forte viés de gênero: 0,007 das execuções foram de mulheres;
  • A pena de morte é racista: foram executados 249 negros pelo assassinato de brancos e 15 brancos pelo assassinato de negros. Ainda que mais negros matem brancos do que vice-versa e o viés esteja declinando, ele não acabou.
  • As execuções não devem ser confundidas com pessoas condenadas à pena de morte: em 2009 havia 3.261 no death row; no mesmo ano foram executadas 52 pessoas. A grande maioria morre na prisão de outras causas ou acaba sendo solta;
  • Quando incluímos alternativas relacionadas à prisão perpétua, inclusive a que obriga o assassino a trabalhar para pagar os dependentes da vitima, apenas um em três continua apoiando a pena de morte. A técnica do survey conta e muito. A construção da pergunta e das alternativas influencia os resultados

    Essa ação legal requer moldura política, valores e muitas informações sem o que não há como entendê-la.

    Gláucio Soares

    Publicado n’O GLOBO de 11 de março de 2011

Entrevista com Luiz Eduardo Soares e Miriam Leitão na Globo News

O link para a conversa com Luiz Eduardo e Miriam Leitão:

http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,JOR384-17665,00.html

O tráfico não manda flores

Jorge Antonio Barros enviou essa reação escrita por Zeca Borges

Desde o final da noite de sábado o Rio vive novos episódios violentos que nos deixam a todos estarrecidos. O primeiro deles foi uma tentativa de arrastão na Rio-Magé, em Caxias, que resultou na morte de Paulo Cesar Alves, que seria funcionário da Reduc. No dia seguinte, mais quatro arrastões ocorreram na cidade, um deles na Rua Presidente Carlos Campos, a poucos metros do Palácio Guanabara, sede do governo do estado. Em 2002, na gestão-tampão de Benedita da Silva, eu, o repórter Jorge Martins e o secretário de redação Antonio Maria viramos a noite após a onda de ataques, um deles com disparos a esmo na fachada do Palácio Guanabara. Era um claro recado ao governo do estado, num momento de transição.

Pois novamente os arrastões na cidade deixaram de ser atos criminosos isolados para virarem rotina, agravados pelo incêndio dos automóveis, depois que os motoristas que são obrigados a abandonar os veículos e fugir desesperadamente, sem saber sequer se podem ser alvo de disparos pelas costas (covardia é uma característica básica desses criminosos). Isso ocorreu novamente ontem na Linha Vermelha. No local, um dos veículos era da Aeronáutica. Com um objetivo claro de sinalizar como um recado às autoridades, o ato bem que poderia unir a inteligência das polícias e das Forças armadas para se planejar com rapidez a resposta que é exigida nesse momento. Em outra ponta, é hora de as polícias buscarem total apoio dos moradores de comunidades pobres já pacificadas ou daquelas que estão dentro do planejamento do governo. O melhor canal para essa colaboração é o Disque-Denúncia (2253-1177). Como na Segunda Guerra, helicópteros da polícia deveriam lançar nas favelas folhetos divulgando o número do Disque-Denúncia e oferecendo até recompensa a informações que levem aos bandidos que estão liderando essa espécie de reação.

Por sua vez, a população no asfalto também precisa reforçar a vigilância e de alguma forma resistir ao medo que cresce nessas horas. Não é fácil. Mas é preciso que não nos deixemos dominar pelo pânico porque é justamente essa a intenção dos criminosos com esses assaltos. Minha modesta sugestão é que incentivemos a criação de redes de proteção, com o uso de mídias sociais, com todo cuidado para não disseminarmos boatos ou informações falsas.

Enquanto a PM tenta reforçar o policiamento de vias expressas (só ontem eu vi três radiopatrulhas num dos acessos ao Túnel Rebouças), o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, talvez tenha que antecipar o retorno de sua viagem ao exterior. Ele foi a Colômbia, levando os comandantes das 12 Unidades de Polícia Pacificadora, justamente o suposto motivo dessa reação dos traficantes, no asfalto.

A situação exige a interação de todas as polícias, de estados vizinhos e dos organismos federais.

A qüestão da responsabilidade individual

A qüestão da responsabilidade individual

Metade dos pacientes de câncer no pulmão que fazem uma cirurgia para removê-lo voltam a fumar até um ano depois. Dos que voltaram, 60% o fizeram logo, até dois meses depois da cirurgia. O estudo, feito pela equipe de Dr. Mark Walker da Washington University School of Medicine, será publicado no número de dezembro de 2006 de Epidemiology, Biomarkers & Prevention.

A evidente irracionalidade desse comportamento gera muitas perguntas sem respostas. A afirmação de que o fazem porque querem, simplesmente, morrer não bate com o fato de terem feito uma cirurgia complicada; a de que é, simplesmente, uma dependência química também não bate com o dado de que 40% o fizeram depois de dois meses.

O arcabouço teórico usado para entender as dependências e o usado para entender o suicídio não parecem suficientes para explicar esses comportamentos. Falta algo.

Qual a qüestão? Os impostos que o(a) sr(a) paga devem ser usados para financiar o tratamento de quem volta a fumar e tem recaída? Onde termina a responsabilidade do estado e começa a do indivíduo?

Para outros artigos com informações e opiniões sobre este tema e sobre a responsabilidade dos usuários, clique nos títulos abaixo:
A legalização da maconha IX – não sai grátis: pesquisas na Holanda
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/03/legalizao-da-maconha-ix-no-sai-grtis.html
Efeitos das campanhas contra o tráfico
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/02/efeitos-das-campanhas-contra-o-trfico.html
Crime e alcoolismo durante a gravidez
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/crime-e-alcoolismo-durante-gravidez.html
Carta sobre Terapia Familiar
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/carta-sobre-terapia-familiar.html
Homicídios em Portugal (e no Brasil)
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/homicdios-em-portugal-e-no-brasil.html
A qüestão da responsabilidade individual
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/qesto-da-responsabilidade-individual.html
MILÍCIAS E VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/milcias-e-violncia-no-rio-de-janeiro.html
Os bons resultados da terapia familiar intensiva – I
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/os-bons-resultados-da-terapia-familiar.html
O novo governador e a volta da esperança
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2007/01/o-novo-governador-e-volta-da-esperana.html
A IMPORTÂNCIA DE ESTUDAR AS EXPERIÊNCIAS EXITOSAS: COLOMBIA
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2006/12/importncia-de-estudar-as-experincias.html
A violência no Rio de Janeiro e os atores ausentes
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2006/12/violncia-no-rio-de-janeiro-e-os-atores.html
A letalíssima combinação entre juventude e armas de fogo
http://conjunturacriminal.blogspot.com/2006/08/letalssima-combinao-entre-juventude-e.html

O EFEITO CINDERELA

Madrastas e padrastos tem má fama. Chega-se a falar do Efeito Cinderela, história clássica, generalizada para todos menores abusados(as) por padrastos ou madrastas. O tema voltou às manchetes no Brasil devido a caso ainda não solucionado que engendrou muitas afirmações estapafúrdias.

O que se sabe sobre isso?

Martin Daly e Margo Wilson são nomes de referência que deram seriedade acadêmica ao Efeito Cinderela. Estimaram as taxas de homicídios por espancamento de menores de 5 anos pelos padrastos e pais biológicos no Canadá, usando dados de 1974 a 1990. Seus resultados mostram não uma, mas duas relações: os que se casam formalmente matam menos do que os que simplesmente se juntam e os pais biológicos matam menos do que os padrastos. As diferenças que encontraram não são pequenas. A “formalidade” do casamento conta muito: entre os pais biológicos ela reduz a taxa de mortalidade por milhão de díades pai/filho(a) de 30,6 para 1,8 e entre os padrastos de 576,5 por 70,6. Vejam quanto essas duas variáveis, casar no papel e ser pai biológico reduzem o risco de homicídio da criança: de 576,5 num extremo para 1,8 no outro. O pior cenário para a criança é o da mãe solteira ou descasada que tem inúmeras relações informais com outros homens. Esse risco é ainda maior se a saúde da criança for pobre.

Por que o casamento com papel produz menos violência? Há os que vêem no papel um sinal de compromisso (quando não há coação); outros propõem que há variáveis associadas com o papel (como recursos e classe social) que podem contribuir para explicar. Porem, para explicar o porquê da diferenças entre pais e mães biológicas e não biológicas, há muito dissenso. Daly e Wilson enveredaram por explicações baseadas na contestadíssima biologia social.

O contraste com a escola sueca é grande. Johanna Nordlund e Hans Temrin, juntamente com Susanne Buchmayer e Magnus Enquist, estão entre os principais opositores da biologia social.  Argumentam que, pelo menos na Suécia, o Efeito Cinderela não existe. Afirmam que o homicídio de menores não é um fenômeno homogêneo: inclui tipos e variedades.  No mais freqüente, a morte da criança resulta de um conflito entre os pais. O filhicídio por pais biológicos vai acompanhado de conflitos domésticos, e até uxoricídio e suicídio com maior freqüência do que quando os assassinos não são os pais biológicos. Padrastos e madrastas, ao contrário, tem risco mais alto de matar enteados e enteadas em conflitos diretos com eles do que os pais genéticos. Uma parte significativa das crianças pequenas mortas deriva de outro fenômeno, chamado eufemisticamente de H/S, homicídios seguidos de suicídios, e em geral são mortas pelas mães. Já quando homens matam e se suicidam, as vítimas são predominantemente suas companheiras ou ex-companheiras.

Outras pesquisas mostram que há outros fatores que contam. Um deles é a presença de filhos do segundo casamento: aumenta o risco. Nos casos em que, os pais ou as mães tenham filhos no novo casamento, o enteado(a) tem um risco maior de abuso, violência e abandono antes de morrer assassinado. Raramente se trata de um “instante infeliz”: segundo Harris e colaboradores, há um percurso, que deixa rastros e pode ser longo antes da violência final. Amigos, parentes e vizinhos têm alguma chance de uma intervenção salvadora: saber que alguém mais está atento intimida alguns dos agressores potenciais e reduz o risco de morte. Há sinais: crianças machucadas que não são levadas rapidamente ao médico ou ao hospital; tentativas de ocultar as lesões; explicações vagas ou contraditórias sobre como aconteceram; crianças que pedem comida ou aparecem na hora do almoço ou do jantar; crianças sós na rua tarde da noite, entre outros. As crianças podem manifestar comportamentos variados que indicam abuso: extrema passividade, fadiga, assim como agressividade e negatividade. É preciso, também, observar pais e mães porque é alta a incidência de doenças mentais entre mães que matam seus filhos, sobretudo entre as que matam filhos maiores.

O abuso sexual de meninas por pais biológicos e por padrastos também tem correlatas diferentes: no caso de abuso pelos pais, a presença de drogas e álcool, assim como de conflitos familiares e de renda baixa é muito maior. Porem, os padrastos que abusam de suas enteadas não têm essas características. O abuso sexual de menores, inclusive por outros menores, é muito comum, mas poucos chegam ao conhecimento das autoridades.

E a cultura, conta?

Conta, e muito. Primeiro, as taxas de infanticídio e de homicídio de menores variam muito entre os países, e em geral variam junto com as taxas nacionais de homicídio. Há países mais e menos violentos. Segundo, os tipos mais freqüentes de mortes de menores não são os mesmos. É o argumento de Nordlund e Temrin.

O oposto também acontece: há filhos que matam pais (e irmãos, tios, avós etc.). Kathleen M. Heide
analisou parricídios e matricídios nos Estados Unidos, concluíndo que ainda se sabe pouco sobre esse crime: na média, os que matam mães e madrastas são muito mais jovens do que os que matam pais e padrastos; nos Estados Unidos, os hispânicos raramente matam as mães etc. Não se sabe muito mais.

A grande maioria de padrastos e madrastas não rejeita, nem abusa dos filhos “da outra” ou “do outro”. Algumas das que rejeitam estão conscientes do problema.  Sentem rejeição pelo enteado ou enteada, mas não a entendem, nem a aceitam. Sentem vergonha do próprio ciúme patológico. É tema freqüente em terapias.

A antítese da rejeição é a adoção. Milhares de crianças são adotadas diariamente neste mundo. Conheço muitas que o foram, algumas por pessoas com poucos recursos. Uma, em Arcoverde, ganha o mínimo e adotou cinco. Essas crianças recebem o amor, o carinho e a atenção que os pais lhes negavam. Uma delas criou um termo para se referir à mãe adotiva: minha boastra.

Gláucio Ary Dillon Soares

IESP/UERJ

Publicado no GLOBO