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O QUE FAZER COM OS CRIMINOSOS?

Essa é uma pergunta que atravessa os tempos. Descrevo uma experiência e apresento umas ideias sobre o custo de diferentes soluções. Somente isso.
Há cerca de dez anos, organizamos o primeiro Seminário sobre os Homicídios no Brasil. Foi em Caruaru, Pernambuco, de 8 a 10 de outubro de 2009, com um pequeno financiamento da SENASP. Outras instituições ajudaram. O programa incluía visitas à penitenciária local. Participavam membros de um grupo de pesquisas que chegaram antes e ficaram depois do seminário entrevistando e estudando aquela penitenciária e os 102 homicidas presos.
Quero contar para vocês algo a respeito da penitenciária, cujo nome oficial é Penitenciária Juiz Plácido de Souza. Durante muito tempo foi uma exceção entre as penitenciárias brasileiras. Comparativamente, a Penitenciária Juiz Plácido de Souza, em Caruaru, teve durante quase uma década níveis baixíssimos de violência interna. Oito anos sem homicídios, sem suicídios, sem rebeliões.
O que diferenciava essa penitenciária de outras, notoriamente mais violentas? Para descobrir, fui diariamente com uma pequena equipe, passando parte do dia (mas não das noites) na penitenciária, entrevistando presos, tentando organizar os
arquivos que, como é comum nas penitenciárias, não havia sido pensado a partir de informações tecnicamente úteis e estavam às moscas.
Caruaru é uma penitenciária fechada; não obstante, muitos presos não queriam a progressão de pena porque isso implicava em ir para outras penitenciárias do estado.
Uma diferença relevante é a do fluxo das informações que chegam à direção. Nessa penitenciária, a então diretora circulava
livremente entre os presos. A diretora, advogada e ex-agente penitenciária, conhecia os presos. Sua “segurança” era feita por outros presos. Em seu escritório encontrei, permanentemente, presos, usualmente solicitando ou até defendendo uma posição ou outra. Em outras penitenciárias, mais perigosas, o diretor se protege, se sente mais vulnerável, e se isola. Se o diretor veio “de fora” do sistema, o isolamento pode ser maior. Cria níveis administrativos que o separa dos presos. Em cada nível, o fluxo de informações é filtrado, como é natural numa burocracia. O que chega ao diretor pode diferir, e muito, da informação original.
Cada nível cria suas próprias redes, onde as opiniões de uns contam mais do que a de outros. O que chega à direção chega muito distorcido. Por isso, um sistema ingênuo de contatos com os apenados também produz melhores informações. É melhor o input para elaborar políticas internas, com jurisdição dentro da prisão.
As orientações da direção, moldada pela Pastoral Carcerária, que foram mantidas e buriladas pela diretora Cirlene Rocha.
Outro aspecto dos mais relevantes para entender a falta relativa de violência na PJPS era a ausência de facções. Em parte isso se deve ao contraste entre a significação, a organização e a luta entre facções que, naquele então, marcavam o Rio de Janeiro, o Norte e o Nordeste, sobretudo o interior do Nordeste. Porém, em parte isso se deve às políticas de controle e de exclusão das facções. Membros de facções criminosas são separados e, se possível, enviados para outras penitenciárias. Uma penitenciária onde todos circulam livremente e se relacionam com todos os demais tem pouco a ver com as penitenciárias nas que os membros de facções em guerra são, necessariamente, mantidos separados uns dos outros. Onde há muitas facções em conflito, como no Rio de Janeiro, a administração é muito mais difícil. Quando as penitenciárias são dominadas por uma só facção o problema passa a ser outro. A facção passa a ter uma fatia considerável do controle sobre os presos, seus membros mais graduados formam redes cujos privilégios atuam como incentivos para uma ampla filiação. Desmantelar as facções dentro das prisões é pré-condição para que o estado efetivamente controle e administre as penitenciárias. Talvez seja uma missão impossível.
Hoje, no futuro, é um pouco mais fácil explicar a paz do que era o presente.
Um fator que não deve ser minimizado é a formação de uma rede institucional com empresas e o setor privado, num sentido amplo. Grupos cívicos em Caruaru se dedicaram – e conseguiram – convencer empresas de que era mais seguro e mais barato absorver ex-presos do que o risco de enfrenta-los na condição de criminosos desempregados esperando para reincidir. Muitas se comprometeram a absorver, e efetivamente absorveram, expresos. O benefício dessa política foi captado nas entrevistas com os presidiários, chamados de apenados. Não foi fácil.
Examinamos 102 homicidas. Seu nível socioeconômico, em geral, e educacional, em particular, era muito baixo. O nível de educação formal dos homicidas era bem mais baixo do que a média estadual e do que a média nacional. Apenas 7% tinham algum segundo grau, a maioria (59%) tinha, apenas, algum primário e 34% não tiveram qualquer educação formal.
Educacionalmente, os homicidas naquela prisão, procedem de níveis educacionais muito baixos.
Preparar os apenados para um emprego depois de soltos é tarefa imprescindível. É difícil convence-los a entrar para programas de capacitação e é difícil mantê-los nos programas.
Vencida essa barreira difícil, é mais fácil garantir um emprego. E as consequências são claras e boas: nas entrevistas semiestruturadas que fizemos, uma das perguntas feitas a todos se referia às cinco coisas mais positivas que os esperavam depois da prisão. Duas se destacavam: a família os esperava e tinham um emprego garantido. Uma terceira, mais distante se referia ao reencontro com Deus e a religião.
Sim, há conversões na prisão.
Sim, há também falsas conversões na prisão.
O emprego à espera e seus esperados efeitos dão relevância ao que proponho chamar de O Enigma de Pastore.
O que é esse enigma?
Ele tem uma estória. Há tempos recebi de José Pastore uma gentil nota na qual expressava um enigma e uma preocupação de interesse para as políticas públicas de segurança. Tínhamos cerca de 25 mil egressos do sistema penitenciário por ano (egressos mesmo, exclusive fugas etc.). Hoje são mais. Dados de pesquisas fragmentadas sugeririam que, por um lado, os egressos que conseguiam emprego reincidiam muito menos do que os que não reincidiam e,
por outro lado, que dados do mesmo tipo sugeriam uma altíssima reincidência entre os egressos, cerca de sete em dez. Não temos dados sólidos que permitam comparar as taxas de reincidência dos egressos que obtiveram emprego com os egressos que não conseguiram. Dados de pesquisas realizadas em outros países permitem concluir que a diferença é grande. Empregá-los, portanto, é de alto interesse para a segurança de todos nós. O enigma: o Brasil criava – naquele momento – cerca de dois milhões e meio de empregos por ano, mas não conseguia empregar 25 mil egressos, um por cento dos empregos criados.
Por quê?
Quem ajudar a resolver esse enigma, ajudará o Brasil, os egressos empregados (e suas famílias) e a si próprio (e sua família e amigos). O que vimos em Caruaru é um passo na solução desse enigma.
Dentro da prisão, há diferenças muito grandes, inclusive de opinião. Naquela prisão, a maioria dos homicidas era composta por assassinos “à antiga”, não vinculados diretamente ao tráfico. As entrevistas com esse grupo revela que achavam que “a garotada do tráfico” seria o grupo que menos aprendeu na prisão. O que, às vezes ingênua e esperançosamente, chamamos de ressocialização, não se aplicaria a eles, com esse nome ou outro qualquer. Voltariam ao crime.
Não pensem que quem avalia bem a Pastoral Carcerária defende a impunidade. Nem pensem que quem a avalia positivamente está “do lado dos bandidos”, é contra a polícia ou só defende direitos humanos para os bandidos.
Recuperar criminosos é tarefa difícil e custosa. Porém, é muito mais caro mantê-los na prisão. E, sem sombra de dúvidas, é muitíssimo mais caro deixá-los nas ruas.
Infelizmente, a Penitenciária Juiz Plácido de Souza mudou. Por razões que desconheço, a diretora foi transferida e a expansão do tráfico e a onda de violência homicida que assolaram o Nordeste mudaram as penitenciárias e seu funcionamento. Passou a ter rebeliões, homicídios e suicídios.
Não obstante, temos que estudar a fundo o que passou em Caruaru. Talvez possamos aprender e fazer nossa parte para reduzir a violência no país.

GLÁUCIO SOARES

Uma entrevista com a diretora do presídio:
https://www.youtube.com/watch?v=ijtf2sEy_Mw