A pena de morte nos Estados Unidos

Ter valores únicos não é uma peculiaridade americana: todos os países têm valores que formam uma configuração única. O que confere excepcionalidade aos Estados Unidos? Serem tão diferentes dos demais países que compunham o chamado Primeiro Mundo. Constatada a força homogeneizadora da industrialização, da urbanização e da globalização, o país que liderou esses processos durante décadas (e ainda exerce considerável liderança) diverge da média. Essas forças não conseguiram mudar muito a herança cultural americana, levando Lipset a, em 1996, publicar American Exceptionalism onde forneceu dados para demonstrar essas diferenças: filho de sindicalista, enfatizou que menos de metade dos americanos sindicalizados favoreciam a obrigação do governo em prover um nível de vida decente para os desempregados. Na Alemanha, Inglaterra e Itália a variação era entre dois terços e três quartos.

Os impostos são vistos como um inimigo. Roosevelt se chocou com uma muralha para criar o imposto de renda. Mesmo antes de Reagan (1981), os Estados Unidos tinham impostos mais baixos, um “welfare state” muito limitado, quase não tinha indústrias públicas e não havia uma só universidade federal. .Somente 31% do PIB americano vinha dos impostos, em contraste com 52% na Suécia e 48% na Holanda.

Essas seriam parte e decorrências do “credo americano”: governo pequeno, individualismo (que inclui responsabilidade irrestrita pelas próprias ações) e igualdade de oportunidades (lembro: não igualdade, igualdade de oportunidade) entre outros. Esse é um credo político que se chocou (e continua se chocando) com valores da sociedade americana.

E o que têm o credo político e os valores da sociedade americana a ver com a pena de morte?

A maioria dos americanos a favorece. Porém, o apoio à pena de morte varia muito. Para compreender a variação devemos conhecer a muralha racial do país, assim como seu extremo individualismo. Em 1992, Andrew Hacker, publicou um livro, Two Nations, Black and White, Separate, Hostile, Unequal, ponto de partida para quem quiser entender o apoio (ou rejeição) à pena de morte. Há outros fatores. O cerne do credo americano inclui a igualdade da oportunidade, governo pequeno, dependência de si mesmo, e iniciativa individual. Indivíduos são premiados e punidos pelo que fazem. Indivíduos competem pelos benefícios distribuídos pelo país; para que a competição seja justa, devem ter chances, oportunidades, iguais. Os americanos não são contra a desigualdade, são contra a desigualdade já na origem. Porém, sabem que esse é o calcanhar de Aquiles da doutrina. Há uma desigualdade de oportunidades que começa antes do nascimento,uma desigualdade estrutural: negros nascem em famílias mais pobres, em partes das cidades mais pobres, nas regiões mais pobres, estudam em piores escolas. A família, influente, ficou de fora do credo político. Entra nas analises, mas dividindo a teoria. As famílias negras transmitem mais mais desvantagens: menos estáveis, com mais filhos, com menos tempo para educar em casa, com desemprego mais alto e muito mais. E a maioria com renda mais baixa. Esses dados provocaram uma cisão ideológica: os defensores à outrance da igualdade de oportunidades defendem a tese de que crianças e pré-adolescentes negros não devem ser prejudicados pelos erros e deficiências de gerações anteriores e propõem medidas corretivas; seus oponentes afirmam que a sociedade não pode ser penalizada pelos erros de outros, brancos ou negros.

Porém, a igualdade de oportunidades, ainda que imperfeita, exige a responsabilidade individual. Cada um deve pagar pelo que faz. Esse pensamento influi sobre a responsabilidade penal. Os americanos são uma sociedade profundamente cristã em seus valores básicos, inclusive o livre arbítrio. Há contradições e hipocrisia, mas o pensamento dominante é cristão e aposta no livre arbítrio.

Muitas sociedades, inclusive as latino-americanas, são católicas e, teoricamente, também acreditam no livre arbítrio. Não obstante, nelas entra em ação outra variável: são sociedades mais dependentes da elite educada, na qual explicações deterministas de vários tipos vicejam e marcam a cultura e as leis. Gera um contraste com as sociedades anglo-saxãs, onde a idéia de que alguém seja socialmente obrigado a cometer um crime é absurda. A inimputabilidade existe na legislação, mas não entrou pelo lado social ou econômico, e sim pelo lado psicológico e psiquiátrico. Lembro que a idade mínima legal nos Estados Unidos e na Europa é muito mais baixa do que no Brasil: sete anos na maioria dos estados americanos, oito na Escócia, dez na Inglaterra, em contraste com 18 no Brasil (assim como era na Colômbia e no Peru).

.E a pena de morte? Há dados relativos à própria pena de morte, sem os que não entenderemos sua sobrevivência, mesmo considerando o credo político americano:

  • Ela não existe em todos os estados (há em 35; não há em 15);
  • .Não há uma avalanche de execuções (houve 1816 execuções desde 1976, média de 52 por ano, entre um terço e a metade das pessoas assassinadas em um só dia no Brasil);
  • As execuções são regional e estadualmente concentradas: 88% ocorreram no Sul, noTexas e na Virgínia;
  • Tem um forte viés de gênero: 0,007 das execuções foram de mulheres;
  • A pena de morte é racista: foram executados 249 negros pelo assassinato de brancos e 15 brancos pelo assassinato de negros. Ainda que mais negros matem brancos do que vice-versa e o viés esteja declinando, ele não acabou.
  • As execuções não devem ser confundidas com pessoas condenadas à pena de morte: em 2009 havia 3.261 no death row; no mesmo ano foram executadas 52 pessoas. A grande maioria morre na prisão de outras causas ou acaba sendo solta;
  • Quando incluímos alternativas relacionadas à prisão perpétua, inclusive a que obriga o assassino a trabalhar para pagar os dependentes da vitima, apenas um em três continua apoiando a pena de morte. A técnica do survey conta e muito. A construção da pergunta e das alternativas influencia os resultados

    Essa ação legal requer moldura política, valores e muitas informações sem o que não há como entendê-la.

    Gláucio Soares

    Publicado n’O GLOBO de 11 de março de 2011

Deixe um comentário