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O crime em baixa: por quê?

Depois que Bogotá e Medellín, assim como o Estado de São Paulo, reduziram dramaticamente suas taxas de criminalidade e mortes violentas, incluindo homicídios, o Rio de Janeiro ficou numa posição desconfortável. Por um lado, vários municípios do estado figuravam entre os mais violentos do país; pelo outro, a baixa nas taxas de outros espaços antes considerados muito mais violentos, tornaram a violência em nosso estado mais visível, mais destacada. Não é o tipo de situação que convive bem com o de sede das Olimpíadas de 2016.

Quando observamos reduções nas taxas de algum tipo de crime, há duas preocupações metodológicas que os pesquisadores enfrentam. A redução decorre de políticas públicas ou de outros fatores? A melhoria foi específica ou generalizada?

É possível ter melhorias em uma ou poucas áreas sem que outras sejam muito afetadas. A “Nova” Lei do Trânsito, promulgada no início de 1998, provocou uma redução considerável nas mortes no trânsito no país – tanto em números absolutos (quatro mil, no primeiro ano), quanto em taxas. Não obstante, as taxas de homicídio continuaram crescendo. A nova legislação era específica. Em alguns casos, medidas que visam um fim específico produzem benefícios em outras áreas. A “Lei Seca”, que foi implementada em Diadema, SP, como parte de uma campanha contra os homicídios, provocou uma redução na violência doméstica, um benefício até certo ponto inesperado.

Porém, há muitos males sociais que andam em grupo. O consumo de drogas e as vendas de armas de fogo andam juntos e, rapidamente, o incremento dos homicídios se une a eles. O aumento no absentismo no trabalho e na escola, e uma explosão de problemas mentais, também acompanham o aumento no consumo de drogas. Em alguns casos, agir diretamente sobre os agentes causadores ou facilitadores imediatos, como as bebidas alcoólicas ou a circulação de armas de fogo, provoca reduções que podem ser significativas e específicas ao mesmo tempo, embora possam produzir benefícios colaterais. Não obstante, há medidas cujos efeitos se fazem sentir em muitas áreas de atividade humana. Melhorar a polícia – através do treinamento, da adoção de tecnologia anti-crime moderna, da redução da violência policial, da redução da corrupção policial, e a liberação de áreas antes sob o controle do crime organizado (no Brasil, usualmente traficantes de drogas e armas) – produzem reduções em muitos crimes e elevações do bem estar e do sentimento de segurança. É o caso das UPP’s, inspiradas no êxito de Medellín. Elas reduziram muitos crimes nas áreas em que foram implantadas e na vizinhança também. Os dados recém divulgados sugerem que foram tomadas  medidas que afetaram um amplo espectro de crimes e, também,  medidas específicas que se concentraram em crimes particulares.

A queda foi geral: comparando o primeiro semestre de 2010 com o de 2009, houve 642 homicídios a menos. São 642 vidas salvas por políticas inteligentes. Esses resultados não são devidos ao acaso: o p-valor é de menos de 0,0001. Outro indicador relativamente confiável é o dos roubos de veículos. Passaram de 1.968 a 1.701, uma baixa de 13,6%. No total dos três anos anteriores já tivemos uma baixa considerável e é em relação a esse total já rebaixado que foram computados os novos ganhos. Por que digo que roubos e furtos de veículos são um indicador relativamente confiável? Por que o que o torna confiável é o seguro obrigatório. É do interesse e da obrigação do proprietário denunciar o roubo ou furto. Porque apenas relativamente? Porque uma parte da frota de veículos vive e circula na ilegalidade; essa frota, relativamente à frota total, é maior nas áreas periféricas do estado e aumenta à medida em que baixa o status socioeconômico do proprietário.  Essas pessoas escolhem viver à margem do estado para evitar o pagamento de taxas e impostos. Delatar o crime de roubo ou furto seria revelar seu próprio delito. Os assaltos a ônibus também são um indicador razoável. Houve uma baixa de 16,5% no seu número.

Esses dados desconstroem alguns mitos. O primeiro é o da migração espacial simples e pura dos criminosos e seus crimes, sem que a taxa estadual de criminalidade fosse severamente alterada. A diminuição em uma área de ação seria compensada pelo aumento em uma área esquecida. Acredito que tenha havido alguma migração, mas insuficiente para anular os efeitos das políticas inteligentes. Longe disso. O segundo é o da migração para outros tipos de crime. O criminoso, numa decisão racional, optaria por outros crimes de menor risco – dadas as políticas implementadas. Mais uma vez, uma verdade parcial – alguns migraram para outros crimes. Mas a baixa das taxas em vários crimes nos diz que a migração que porventura tenha existido não compensou as medidas inteligentes relativas a esses outros crimes. A baixa foi geral. A terceira é o mito de que uma vez criminoso, sempre criminoso e só criminoso. Essa crença ignora o conhecimento, proporcionado por inúmeras pesquisas mundo afora, que mostra que o mundo da ilegalidade e o da legalidade se interpenetram. Criminosos alternam carreiras criminosas com trabalhos legais. Atividades criminosas coexistem com atividades legítimas. Os mesmos indivíduos trabalham e cometem crimes. Há um amplo contingente de pessoas cuja entrada, breve ou longa, no mundo do crime, grande ou pequeno, depende apenas de oportunidade.

Os resultados mostram que nosso estado está mais seguro. Como alguns outros, está levando a segurança do povo em sério. Não obstante, falta muito para chegar ao nível considerado aceitável em muitos países considerados desenvolvidos.

Não podemos fechar sem fazer referência à redução do tempo até a divulgação dos dados. O que antes requeria vários anos, agora se sabe em poucos meses. São dados preliminares e teremos ajustes, mas as tendências são claras. O crime está em baixa no Rio de Janeiro.

Gláucio Ary Dillon Soares

IESP/UERJ

Publicado no Jornal do Brasil

Homicídios na França

Publicado no Correio Braziliense em 03/01/2008

por GLÁUCIO ARY DILLON SOARES. Sociólogo, é pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj)

Pesquisa sobre os homicídios na França traz revelações importantes e, algumas, inesperadas. O objetivo era determinar o perfil sócio-demográfico dos homicidas e de suas vítimas. Há muitas semelhanças com o Brasil: 85% são homens e as mulheres, maioria na população, representam apenas 15% dos agressores. Mas a participação das mulheres varia com o local do crime, crescendo muito quando cometido no círculo familiar, em residências. Nesse contexto, os homens continuam sendo a maioria, mas a percentagem das mulheres é muito maior. As mulheres, claramente sub-representadas entre os agressores, são mais numerosas entre as vítimas (34%).

Outra semelhança com o Brasil se refere à idade dos condenados, que tendem a ser jovens adultos (ou nem tão jovens): dois terços entre 20 e 40 anos. Há alguma diferença no que concerne aos mais jovens: apenas 6% entre 13 e 18. O pico dos condenados na França está entre 20 e 24. Em 1990, o mais jovem condenado naquele país tinha 15 anos e o mais velho, 62. Na França, a idade mínima penal é de 13 anos.

Um dos problemas mais sérios, que é politicamente quente, é a participação dos estrangeiros na violência. Dependendo do ano, os forasteiros representavam entre 17% e 27% dos homicidas ou dos que tentaram matar alguém, mas apenas 10% da população.

Porém, em parte essa diferença poderia ser explicada pelo maior desemprego dos estrangeiros. No grupo de idade entre 15 e 24 anos, os estrangeiros matam mais do que os franceses. Mas há uma ampla maioria de trabalhadores manuais entre os agressores e mais desempregados em relação aos franceses.

A síndrome dos agressores fecha bem com o que acontece em vários países: 68% não têm qualquer diploma; apenas um em cinco chegou ao Certificado de Aptidão Profissional (CAP). Durante o período estudado, de 1987 a 1996, a França atravessou uma fase difícil, e apenas 39% dos agressores estavam na força de trabalho. É interessante notar que relativamente poucos estavam desempregados – cerca de 10% -, mas que muitos não integravam a População Economicamente Ativa (PEA). Simplesmente não trabalhavam.

Ficaram para trás educacionalmente e tropeçaram em suas carreiras e no trabalho.

Mas, em que trabalhavam? Entre os que trabalhavam, cerca de nove em 10 eram da classe trabalhadora, seja manual ou não, mal remunerada. A trama sócio-criminal é complexa, pois os que estavam empregados matavam, sobretudo, suas esposas e companheiras, ao passo que os desempregados e que não trabalhavam matavam estranhos ou conhecidos distantes.

E a família? Em países com baixa taxa de homicídios e com um sistema de proteção social mais amplo, como a França, a ruptura da família parece contar menos. A maioria dos homicidas cresceu em famílias completas, mas uma percentagem relativamente alta teve que lidar com muitas mudanças (passando de um lar para outro, de um contexto para outro): 28% do total. Outros 16% tinham sido referidos pelo serviço social do estado a um serviço ou família. Se, por um lado, as famílias incompletas não são tantas como se achava, por outro há um número grande de criminosos que cresceram numa família com muito conflito interno, inclusive com o agressor. Vinte e oito por cento tinham conflitos familiares que incluíam agressões físicas. As famílias também eram maiores do que a média do departamento: famílias grandes caracterizam migrantes e trabalhadores manuais.

A pesquisa foi feita no Departamento de Yvelines, por Laurent Mucchielli e Mireille Rabenoro, com base nos dados judiciais da Corte de Apelações de Versailles, e é uma das pouquíssimas pesquisas sobre homicídios na França. Mostra que há importantes diferenças no contexto e que situações locais devem ser incluídas na explicação.