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O monstro mora lá em casa

Melissa é uma adolescente de 14 anos que conheci no interior do Nordeste, na divisória entre o Agreste e o Sertão. É a filha mais velha de Euricéia que, há alguns anos, foi viver com outro companheiro, com o qual teve mais três filhos. É um alcoólatra, praga disseminada no interior do Nordeste. Quando está alcoolizado, vem à tona o pior da cultura machista da região: a definição da mulher como inferior ao homem, um corpo auxiliar do homem, podendo deflagrar violência incontida contra ela.  Melissa defende Euricéia, mas, por ser mulher, sua defesa não encontra legitimidade na população nem nas instituições. Na última surra, Melissa tentou segurá-lo e impedi-lo de continuar chutando e socando a mãe. A agressividade se voltou contra ela: enfurecido, agarrou uma chave de fenda e bateu na cabeça de Melissa, que perdeu a audição em um ouvido. Tinha 13 anos.

Redes sociais, particularmente de familiares e de amigos, são importantes porque facilitam sair do ambiente violento, concedem um tempo para respirar, um lugar para ficar, às vezes acompanhado de quantidades pequenas de dinheiro para necessidades mínimas. Euricéia não tinha rede local pessoal; por isso, sofreu durante anos. Ao contrário, uma rede de pessoas e instituições guiadas por uma cultura machista funcionava contra ela. A solução apareceu, casualmente, quando um contribuinte da instituição católica que a ajudava e educava os filhos resolveu comprar a briga.

Porém, Euricéia foi culturalmente amputada. Uma das condições para permanecer na nova morada é cuidá-la, consertá-la etc. Euricéia não faz nada disso, sob a alegação de que “isso é coisa de homem”. As interpretações dos que a conhecem variam desde considerá-la uma vítima, até uma preguiçosa à espera de um homem para “tomar conta” dela e dos filhos, uma postura chamada de Complexo de Cinderela por Collette Dowling. Essas amputações são freqüentes e imobilizam muitas mulheres.

Agüentar esse tipo de violência durante anos não é exclusividade de pobres ou residentes do sertão.  Patrícia é uma psicóloga que cresceu numa família funcional. Namorou e, aos três meses, engravidou. Sua história é exemplo da importância da rede de apoio. A família se opôs ao casamento. Em pouco tempo, Patrícia descobriu com quem se casara: um dependente químico, que vivia de golpes, tinha ficha policial, e era extremamente violento quando drogado ou alcoolizado. A rede da família do marido, embora gostasse de Patrícia, ocultou os vícios do rapaz, talvez na esperança de que o casamento o “consertasse”. Em dias, Patrícia passou a viver o pesadelo da violência doméstica. Seu primeiro filho nasceu prematuramente, devido aos chutes recebidos na barriga. Porém, sua família se negou a recebê-la de volta, alegando que foram contra o casamento e que ela deveria arcar com as conseqüências de sua decisão. A rede mais importante a que as mulheres brasileiras têm acesso, a família, não a protegeu. Patrícia perdeu o emprego devido ao absentismo e à gravidez. Apanhou muito. Foi apenas quando uma amiga se dispôs a vender um apartamento e a deixou ficar lá até que o vendesse que Patrícia pode sair de casa – por seis meses. Mas a falta de segurança e as repetidas promessas do marido a fizeram voltar; mais uma vez se descuidou e o resultado foi o segundo filho. Mas nada mudou. Piorou: mais surras e, agora, ameaça de morte com um revólver. Patrícia, sem rede institucional ou pessoal de apoio, agüentou dois anos e meio até decidir fugir, no meio da noite, num caminhão com os filhos e suas coisas. Fugiu para o interior do estado, sem deixar pista.

Patrícia teve nova chance: competente, conseguiu empregos, através de concursos, com remuneração adequada. Encontrou outro companheiro, em nada parecido com o ex-marido, que aceitou seus filhos e com quem teve outros dois. Só entrou em contato com o marido anos mais tarde, para exigir pensão para os filhos dele. Quem a paga é a família porque ele continua drogado e sem trabalho fixo. Patrícia só reconstruiu sua vida e recuperou seus direitos, porque construiu nova rede pessoal e institucional. Passou a trabalhar no Judiciário e a rede institucional, que antes protegia o ex-marido, passou a protegê-la.

Quando a violência se origina na própria família, a primeira rede de socorro, a vítima fica sem alternativa, o que é freqüente nos casos de abuso sexual. Como não temos dados confiáveis brasileiros, usamos referências internacionais. Langan e Harlow concluíram que vinte por cento dos abusos sexuais de crianças são feitos pelo pai. Dezesseis por cento das vitimas de estupro têm menos de doze anos e metade tem menos de 18. A média das idades quando acontece o primeiro abuso é de 9,6 anos para meninas e 9,9 anos para meninos. Não é um crime entre estranhos: em 96% dos casos, a vítima conhecia o estuprador. Tende a ser seriado, contínuo e a acontecer dentro da rede familiar onde a relação entre vítima e monstro é permanente, o abuso tende a aumentar e dura, na média, quatro anos. Noventa e seis por centro dos que abusam são heterossexuais e mais da metade deles abusa outras crianças, dentro ou fora da família. O abuso sexual é um padrão comportamental.

É o caso de Tatiana, vítima de abuso sexual do pai e da mãe. Hoje, com trinta anos e seriamente traumatizada, não consegue se lembrar das primeiras vezes em que o abuso aconteceu. Sabe que era obrigada a participar das relações entre o pai e a mãe e que o pai fazia sexo oral nela. Sabe que não houve penetração, mas que o pai “se esfregava” nela. Os pais se separaram, mas continuaram a se visitar e a levá-la contra a vontade. Os demais membros da rede familiar não entendiam a resistência de Tatiana a visitar o pai, nem suas constantes fugas quando o pai visitava. Atribuíam o problema à criança, que consideravam difícil e agressiva.

O abuso sexual não sai barato: Haj-Yahia e Tamish, estudando vítimas palestinas, constataram maior incidência de psicoses, ansiedades, fobias, paranóias, depressão, TOC e outros problemas psicológicos entre vítimas do que em um grupo controle com características semelhantes. Pesquisas em outros países produziram resultados iguais. As denúncias de abuso sexual são regularmente examinadas no que concerne veracidade e detalhe: dois por cento das feitas por crianças são falsas, percentagem que aumenta para seis entre adultos.

Muitas destas violências não chegam a ser conhecidas; trancafiadas nos segredos de família. Infelizmente, o abuso sexual de crianças acontece freqüentemente, com a conivência e/ou a omissão culposa de outros membros da família.

O abuso de Tatiana durou toda a infância, até a morte do pai, quando ela tinha doze anos. Foram necessários mais dezesseis anos até que ela conseguisse falar a respeito, primeiro com a terapeuta, depois com algumas amigas e membros selecionados da família.

Pensou e planejou suicídio, e desejou a morte dos pais, mas não a planejou. Tem sérios problemas psicológicos que atribui aos muitos anos de abuso sexual – no mínimo quatro.

As entrevistas relatadas (Melissa, Euricéia, Patrícia e Tatiana) são parte de um projeto maior sobre violência doméstica. Foram pessoais, com corroboração de, pelo menos, uma pessoa não participante. Todos os nomes e outros identificadores foram alterados.

Gláucio Ary Dillon Soares

IESP/UERJ

Publicado no GLOBO

Crime e Câncer

Foi publicado com um título diferente n’O Globo de 20/01/2008

Crime e câncer

Crime e câncer na mesma frase? Não, não é erro. Pode haver uma conexão que passa por fatores intermediários, como o medo, a depressão e o estresse. Esse vínculo, se demonstrado no Brasil mostraria que os níveis altíssimos de crime e violência têm conseqüências que vão muito além das vítimas visíveis. Talvez valha a pena repetir uns dados: há dois anos publicamos um livro, As Vítimas Ocultas, que abre com a seguinte frase – “Entre 1979 e 2001, mais de 600 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. O número é cataclísmico.” De lá para cá, aproximadamente mais 40 a 50 mil por ano. Incluindo acidentes e suicídios, perto de dois milhões de mortos desde 1979. Esses dados se referem aos mortos apenas – a violência não letal é muitíssimo maior. Não temos como avaliar o monto de ações violentas não-fatais, como estupros, assaltos, agressões, violência doméstica etc. As situações de violência provocam reações: umas, no momento, fáceis de notar; outras, mais demoradas e insidiosas, mas não menos prejudiciais. No Brasil, algumas conseqüências foram aferidas pela Pesquisa Social Brasileira: 39% procuraram evitar conversar sobre violência com amigos e parentes; 53% procuraram evitar ver programas de televisão que falassem sobre violência; 60% procuraram evitar qualquer coisa que lembrasse situações de violência; 63% procuraram evitar pensar em violência etc.

Outra pesquisa, feita na área metropolitana de São Paulo, sublinhou série semelhante de conseqüências muito negativas: em cada três paulistanos, dois evitam, conscientemente, pensar em violência; psicologicamente, pode ter aspectos saudáveis; politicamente é estratégia de avestruz. Porém há dados mais graves: três em quatro paulistanos sentem medo quando pensam na violência de modo geral. É um quadro que encolhe a vida e reduz a felicidade das pessoas. Um em cada quatro paulistanos teve dificuldade em se concentrar porque ficou pensando na violência – no último ano. O sono também foi afetado: no último mês, 48% tiveram dificuldade de dormir porque ficaram pensando na violência e 51% sonharam com situações de violência. O nível de estresse é altíssimo. Observem que 64% (dois terços) se sentiram mal quando pensaram na violência.

E o que tem isso a ver com a saúde física em geral e o câncer em particular?

A vinculação entre estresse, depressão, falta de sono, de um lado, e problemas de saúde, inclusive o câncer, do outro, é apoiada por muitas pesquisas, embora haja controvérsias a respeito. Uma das pesquisas mais recentes, publicada nos Archives of General Psychiatry, demonstra que, num casal comum e corrente, o estresse de uma rusga de meia hora de duração basta para atrasar a capacidade dos seus corpos em fechar feridas em pelo menos um dia. Se a relação for normalmente conflitiva, o efeito de cada nova rusga poderá ser dobrado. Esses estudos são feitos no Ohio State University ‘s Institute for Behavioral Medicine Research que concentra esforços em ver como o estresse psicológico afeta o sistema imune.

Podemos começar a analisar a relação entre crime, estresse e câncer em ocupações altamente estressantes, particularmente as que trabalham diretamente com o crime e a violência, como policiais e agentes penitenciários.

Uma pesquisa feita por com dados suecos sugere que situações estressantes, como as vinculadas ao trabalho, nos dez anos anteriores à pesquisa aumentavam o risco de câncer de colo-retal. O risco relativo aos que não tiveram situações estressantes no trabalho (controlando a idade e o gênero) era de 5,5. Ou seja: estresse no trabalho aumentava em 450% o risco de câncer, bem mais do que a morte do cônjuge, que aumentava em 50%. Mudar de residência também aumentava o risco relativo (2,8). Kune e associados usaram dados do Melbourne Colorectal Cancer Study: entrevistaram 715 pacientes e 727 controles. Concluíram que doenças graves ou a morte de alguém na família, problemas familiares sérios (conflitos, infidelidades, separações e divórcios) e pesados problemas no trabalho durante os cinco anos precedentes aumentavam o risco de câncer colo-retal. Além disso, entre os que enfrentaram esses problemas objetivos, os que ficaram mais perturbados com eles tinham um risco mais elevado de câncer. O problema, em si, já contava; a reação ao problema, adicionava. Aliás, em outra análise dos mesmos dados, os autores descobriram que a religiosidade protege contra o câncer (Risco Relativo 30% menor, P = 0,002). Entre os que tiveram câncer, a sobrevivência dos religiosos foi de 62 meses contra 52 dos demais.

A ponderável, mas não totalmente consistente, massa de resultados ligando estresse ocupacional a problemas de saúde, física e psicológica, inclusive ao câncer, levou um tribunal do trabalho da Austrália, o South Australian Workers Compensation Tribunal, a concluir que o estresse ocupacional contribuiu para o câncer colo-retal de um agente penitenciário, qualificando-o para receber uma indenização. Isso, na Austrália: imaginem no Brasil, onde a violência dentro das prisões possivelmente contribui para deteriorar o estado físico e mental de agentes penitenciários e de prisioneiros.

Não obstante, a população também sofre com o crime e a violência, via estresse, medo, depressão, insônia e outros males que reduzem e muito nossa resistência. Essa é uma área relativamente jovem, mas seus resultados já sugerem que o dano invisível causado pelo crime e pela violência é simplesmente gigantesco.

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES