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Caçando seres humanos

Alguns acontecimentos recentes reacenderam o receio da volta de novo tipo de vigilantismo (na sua acepção mais ampla) no nosso país. Sabemos pouco sobre essas ações coletivas. Quando surgem e contra quem se dirigem? Elas não aparecem no vazio. Combinam no perfil dois tipos de agressor, o mais mais ameaçador e o do que tem maior índice (percebido) de impunidade. Não basta um: os dois elementos têm que estar presentes. A impunidade dos “irrelevantes”, daqueles que não são percebidos como ameaças diretas à vida e à propriedade do interessado, dificilmente produzirá justiceiros. Há muitos exemplos: a percepção da impunidade absoluta dos responsáveis por pesados desvios do patrimônio público, ou pela impunidade relativa dos condenados no “mensalão”, passaram anos em liberdade depois dos crimes, e a constatação de que mesmo na prisão gozam de regalias não acessíveis aos demais presos, pode causar indignação, mas não medo. Mas há o medo de outros crimes. O medo é um grande estímulo à violência, e a população brasileira tem medo. A metade da população brasileira tem medo de morrer assassinada! O medo não é obrigatoriamente proporcional ao crime. Em vários países europeus, o medo dos idosos e das minorias é maior do que o risco real. E qual a subpopulação que causa muito medo cuja impunidade seria garantida pela própria lei? Os adolescentes. Parte substantiva da violência poderá ser dirigida contra adolescentes e homens jovens. A população não concorda com vários dispositivos do ECA, começando pela maioridade penal. Em abril de 2013, 93% dos paulistanos defendiam sua redução; para 45% a idade mínima deveria ficar entre 16 e 17 anos (atualmente são 18) e um terço achava que infratores adolescentes entre 13 e 15 anos deveriam ser presos como adultos.

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A Pesquisa entre Paulistanos sobre a Idade Mínima Penal

É uma postura nacional: uma pesquisa do Senado realizada em 2012 revela que 89% da população favorece a redução da maioridade penal.

clip_image004[i] Ao sexo e à idade, se juntam outros fatores como etnia e raça, local de residência, aparência, roupas e mais. O perfil, um instrumento da análise criminológica, pode se transformar num fundamento de expressão do preconceito de “justiceiros”. Porque digo expressão do preconceito? Porque antes de qualquer dado ou informação precisa sobre o(s) autore(s) do crime já se formou uma presunção de culpa aplicável a todos com perfil semelhante, o que aumenta o risco de inocentes serem seviciados e/ou mortos.

A impunidade é outro poderoso fator na gestação de grupos de “justiceiros”. Quando existe a percepção de que essa impunidade é ilegítima, ainda que legal, se fortalece a crença de que o “sistema” não é capaz de fazer justiça quando os autores tiverem esse perfil. “Se o sistema não faz justiça, nós faremos”… Essa percepção pode orientar a punitividade ilegal, pré-definindo o tipo de infrator a ser punido. No Brasil, a população considera um privilégio indevido a proteção derivada da idade mínima penal aos menores de 18 anos. Qual o resultado: não saem à caça de criminosos, o que já seria muito negativo; saem à caça de pessoas com o perfil criado: homens jovens ou adolescentes, pobres, predominantemente negros, moradores de comunidade etc. Caçam humanos que pareçam criminosos. Há outros fatores que foram esquecidos nas análises desses eventos recentes; alguns deles são óbvios. A extensão do crime no país é uma condição que favorece o surgimento de grupos de “justiceiros”. O vigilantismo espontâneo (como diferente do induzido) se dá principalmente em sociedades com altas taxas de crimes, particularmente os violentos, onde há falência das instituições politicas e sociais, sobretudo da polícia e da justiça. A Lei de Gerson é muito arraigada, sendo grande o número dos que querem “se dar bem”, mesmo à custa do interesse legítimo de outros. É a morte da ética. Caldo de cultivo para movimentos redentoristas, de “reconstrução” da sociedade. As correlatas dos crimes violentos são multiplicadas pelo preconceito, levando ao lado aberrante da técnica dos perfis. Homens que preencham essas características são suspeitos – antes e depois de qualquer fato. Essas predisposições preconceituosas podem se transformar num sistema de punições preventivas, erradas e injustas. Não queremos Damiens seviciados pela população. A história está repleta de massacres preventivos ou punitivos baseados em informações falsas. Esperemos que não aconteçam no Brasil.   [i] Travis Hirschi e Michael Gottfredson, Age and the explanation of crime, em American Journal of Sociology, Vol. 89, No. 3, Nov., 1983.

GLÁUCIO SOARES    IESP-UERJ

  Versão preliminar publicada no Correio Braziliense de 2 de fevereiro de 2014       a morte de jovens delinqüentes, jovens assassinos, preconceito, perfil de homicidas, justiceiros, vigilantes, execuções sumárias, falência do judiciário e da polícia   Caçando seres humanos

Homicídios na França

Publicado no Correio Braziliense, 03/01/2008
GLAUCIO ARY DILLON SOARES, Sociólogo, é pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj)

Pesquisa sobre os homicídios na França traz revelações importantes e, algumas, inesperadas. O objetivo era determinar o perfil sócio-demográfico dos homicidas e de suas vítimas. Há muitas semelhanças com o Brasil: 85% são homens e as mulheres, maioria na população, representam apenas 15% dos agressores. Mas a participação das mulheres varia com o local do crime, crescendo muito quando cometido no círculo familiar, em residências. Nesse contexto, os homens continuam sendo a maioria, mas a percentagem das mulheres é muito maior. As mulheres, claramente sub-representadas entre os agressores, são mais numerosas entre as vítimas (34%).
Outra semelhança com o Brasil se refere à idade dos condenados, que tendem a ser jovens adultos (ou nem tão jovens): dois terços entre 20 e 40 anos. Há alguma diferença no que concerne aos mais jovens: apenas 6% entre 13 e 18. O pico dos condenados na França está entre 20 e 24. Em 1990, o mais jovem condenado naquele país tinha 15 anos e o mais velho, 62. Na França, a idade mínima penal é de 13 anos.
Um dos problemas mais sérios, que é politicamente quente, é a participação dos estrangeiros na violência. Dependendo do ano, os forasteiros representavam entre 17% e 27% dos homicidas ou dos que tentaram matar alguém, mas apenas 10% da população.
Porém, em parte essa diferença poderia ser explicada pelo maior desemprego dos estrangeiros. No grupo de idade entre 15 e 24 anos, os estrangeiros matam mais do que os franceses. Mas há uma ampla maioria de trabalhadores manuais entre os agressores e mais desempregados em relação aos franceses.
A síndrome dos agressores fecha bem com o que acontece em vários países: 68% não têm qualquer diploma; apenas um em cinco chegou ao Certificado de Aptidão Profissional (CAP). Durante o período estudado, de 1987 a 1996, a França atravessou uma fase difícil, e apenas 39% dos agressores estavam na força de trabalho. É interessante notar que relativamente poucos estavam desempregados — cerca de 10% —, mas que muitos não integravam a População Economicamente Ativa (PEA). Simplesmente não trabalhavam.
Ficaram para trás educacionalmente e tropeçaram em suas carreiras e no trabalho.
Mas, em que trabalhavam? Entre os que trabalhavam, cerca de nove em 10 eram da classe trabalhadora, seja manual ou não, mal remunerada. A trama sócio-criminal é complexa, pois os que estavam empregados matavam, sobretudo, suas esposas e companheiras, ao passo que os desempregados e que não trabalhavam matavam estranhos ou conhecidos distantes.
E a família? Em países com baixa taxa de homicídios e com um sistema de proteção social mais amplo, como a França, a ruptura da família parece contar menos. A maioria dos homicidas cresceu em famílias completas, mas uma percentagem relativamente alta teve que lidar com muitas mudanças (passando de um lar para outro, de um contexto para outro): 28% do total. Outros 16% tinham sido referidos pelo serviço social do estado a um serviço ou família. Se, por um lado, as famílias incompletas não são tantas como se achava, por outro há um número grande de criminosos que cresceram numa família com muito conflito interno, inclusive com o agressor. Vinte e oito por cento tinham conflitos familiares que incluíam agressões físicas. As famílias também eram maiores do que a média do departamento: famílias grandes caracterizam migrantes e trabalhadores manuais.
A pesquisa foi feita no Departamento de Yvelines, por Laurent Mucchielli e Mireille Rabenoro, com base nos dados judiciais da Corte de Apelações de Versailles, e é uma das pouquíssimas pesquisas sobre homicídios na França. Mostra que há importantes diferenças no contexto e que situações locais devem ser incluídas na explicação.
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