Arquivo da categoria: Estatuto do Desarmamento

Grupo de leitura e estudos sobre armas de fogo

Vamos criar um grupo de estudos sobre a legislação sobre armas? Qualquer um deve poder participar lendo. Para opinar, ajudaria se entendessem, minimamente, um pouquinho de Estatística e de Métodos de Pesquisa.

Vou dar o ponta-pé inicial:

Comecemos com algumas das pesquisas incluídas no megaestudo sobre mudanças na legislação que controla a venda e propriedade de armas de fogo e suas consequências sobre os homicídios e sobre todas as mortes com armas de fogo.

A África do Sul é um exemplo importante porque NÃO é um país industrializado, com altíssima renda per capita etc. Talvez seja mais parecida a nós. Em 2000, a África do Sul aprovou o Firearm Control Act, que inclui três condições associadas à redução da violência:

• Proibição, simples e pura, de vender, comprar e possuir armas automáticas (AK’s, AR-15’s, etc. como a que matou cinquenta pessoas em Orlando ontem à noite);

• Verificar quem quer comprar ou de outra forma obter uma arma de fogo. É evidente que criminosos, terroristas, pessoas com algumas doenças mentais (mas não outras) e outros com antecedentes de violência não puderam mais adquirir armas e

• Tornou-se obrigatória a licença para obter armas e para vendê-las.

Qual o resultado?

Houve uma redução de 13,6% AO ANO na taxa de homicídios com armas de fogo.

Tendo tempo, resumirei outras das cerca de 130 pesquisas.

Espero que os interessados leiam.

Para consultar a pesquisa original realizada na África do Sul:

Richard G. Matzopoulos, Mary Lou Thompson, and Jonathan E. Myers. Firearm and Nonfirearm Homicide in 5 South African Cities: A Retrospective Population-Based Study. American Journal of Public Health: March 2014, Vol. 104, No. 3, pp. 455-460.

doi: 10.2105/AJPH.2013.310650

Está nos Periódicos CAPES.

Se quiserem baixar, também podem. Sigam as instruções:

Reprints can be ordered at http://www.ajph.org by clicking the “Reprints” link.

Read More: http://ajph.aphapublications.org/…/abs/10.…/AJPH.2013.310650

Gláucio Soares, IESP-UERJ

CONTROLE DE ARMAS: A CONFUSÃO ENTRE PESQUISAS CIENTÍFICAS E DEBATES POLÍTICOS

A participação, numa comissão de estudos sobre o controle de armas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, provocou, em mim, uma reflexão sobre a dificuldade generalizada em entender as análises científicas de temas que foram politizados. Houve intervenções reclamando de parcialidade na seleção dos palestrantes que seriam apenas de “um lado”, deixando o “outro lado” sem representação. Viam a apresentação dos resultados de pesquisas como parte de um debate, ao qual faltaria o contraditório.
É importante entender o pensamento e a mente por trás dessas incompreensões. Nós, que defendemos o controle das armas a partir do conhecimento científico produzido por, virtualmente, milhares de pesquisas realizadas em dezenas de países, tratamos o “outro lado” como homogêneo. Erro. Longe disso. É heterogêneo.
Um dos participantes, um deputado federal pelo Ceará, soube acompanhar as demonstrações e análises de dados feitas na comissão. Percebeu que a legislação salvou vidas e ofereceu uma perspectiva nova: o PL que destrói o Estatuto do Desarmamento, segundo ele, será aprovado. Lutar contra a aprovação seria perda de tempo e de recursos. Caberia tentar mudar o PL, reduzindo o seu dano. “Damage control” é o termo que me vem à mente. Essa é uma perspectiva para a qual muitos não estávamos preparados. Sem abandonar o objetivo ideal de preservar e fortalecer o ED, temos que pensar também em combater o PL, mudando-o “desde dentro”. Lutar pelo melhor, mas estar preparados para o pior. Abrir uma frente interna “do outro lado”. Havia diversidade entre os críticos. Um estava fechado para os dados, as análises e os argumentos que foram apresentados pelos palestrantes com diferentes estratégias de apresentação e vocabulários. Não estava interessado em conhecer. Vestiu o cérebro com armadura.
Uma das apresentações, excelente, aliás, foi essencialmente acadêmica e usou análises e vocabulário que requerem alguns anos de treinamento para sua cabal compreensão. O público-alvo era o que assistiu a vários painéis do Fórum. Professores, pesquisadores, alunos de pós-graduação. As demais conferências se distribuíram ao longo de um contínuo de exigências para seu entendimento. Não obstante, independentemente do estilo, havia muitos no auditório que chegaram preparados, armados para um debate. Tinham em comum não somente suas preferencias e posições, mas também uma indiferença em relação aos dados empíricos e uma ausência de conhecimento sobre o que é o método científico.
Creio que, infelizmente, são um reflexo de uma deficiência maior, da população brasileira no entendimento do que é ciência, do que é pesquisa, do que é método, de uma incapacidade de diferenciar entre dado e argumento. Esse é a moldura do pensamento e da informação do “outro lado” e me preocupa. Despreocupar-se dela é aceitar que a informação, a divulgação dos resultados das pesquisas e o seu entendimento, assim como os debates se restringirão a uma elite letrada, pró ou contra, mas elite. Uma violência social. Elitizar o debate não apenas compromete o resultado, mas também implica em uma postura ética insustentável diante de uma razão de riscos extremamente alta: a taxa de vitimização da elite que debate e analisa é muito baixa em relação à dos excluídos pela educação insuficiente. Em verdade, completar o segundo ciclo reduz o risco de vitimização por homicídio a um terço. Enquanto uns discutem, outros, diferentes dos uns, morrem.
Nesse meu primeiro pensar, temos que levar a sério a heterogeneidade do “outro lado” e, se quisermos evitar o derramamento de sangue que o PL, em sua forma atual provocará, temos que convencer os segmentos, possivelmente amplos, do “outro lado”, do que mostram as pesquisas, de como ler e entender seus resultados, evitando o contraditório. Não se trata, apenas, de “conhecer teu inimigo”, mas aceitar que parte importante “do inimigo” é composta por pessoas do bem que, tendo acesso ao conhecimento em formato que facilite sua digestão, não hesitarão em apoiar medidas que salvarão vidas.
Pensando no Brasil do futuro, dos nossos netos e bisnetos, o mais preocupante é a moldura da ignorância, a cidadania incompleta de grande parte dos brasileiros, da qual esse distanciamento do conhecimento científico de parte da elite se alimenta.

GLÁUCIO SOARES

Baixam os homicídios no Rio

Temos muito que celebrar. Estamos em junho; pois, saibam que em maio de 2015 houve 344 homicídios dolosos, uma baixa de 22% em relação ao mês de maio de 2014. O mais importante é que este maio foi o que menos homicídios teve em 24 anos, desde que a série do ISP começou. E um bônus adicional: foram vários os crimes que baixaram, não somente os homicídios.

Há outros pontos importantes: os dados de maio, ainda que provisórios, foram divulgados duas semanas depois. Há algum tempo, passavam meses até a divulgação. Em comparação com outros estados, o Rio de Janeiro divulga rapidamente os seus dados.

Há razões para a redução: políticas públicas inteligentes. No nível nacional, desde 2004 o Estatuto do Desarmamento facilitou o combate ao crime e a redução das mortes por armas de fogo naqueles estados preparados para usá-las. E há várias políticas públicas estaduais que também contribuíram. UPPs, Disque-denúncia, melhoria da perícia, a lenta e muito necessária melhoria das polícias, o aumento na taxa de resolução dos crimes e muito mais. Na minha opinião, contaram, e muito, a continuidade das políticas exitosas, a permanência de um Secretário de Segurança que é policial, estudioso e conhece o campo – como diferente das práticas tradicionais de entregar o cargo a um político, a um militar ou a um parente – e a redução da influência dos prefeitos na escolha dos delegados, um cargo que não pode ser político.

Avançamos muito, mas ainda falta muito, muito: mais de trezentos homicídios em um só mês é uma cifra inaceitável. É, aproximadamente, o dobro do observado na Holanda em todo o ano, um país com população semelhante à do nosso estado.

Chegaremos lá!

Bons governos salvam vidas!

 

GLÁUCIO SOARES IESP-UERJ

Estado do Rio de Janeiro: o melhor mês de maio em 24 anos!

Temos muito que celebrar. Estamos em junho; pois, saibam que em maio de 2015 houve 344 homicídios dolosos, uma baixa de 22% em relação ao mês de maio de 2014. O mais importante é que este maio foi o que menos homicídios teve em 24 anos, desde que a série do ISP começou. E um bônus adicional: vários crimes também baixaram.

Há outros pontos importantes: os dados de maio, ainda que provisórios, foram divulgados duas semanas depois. Há algum tempo, passavam meses até a divulgação. Em comparação com outros estados, o Rio de Janeiro divulga rapidamente os seus dados.

Há razões para a redução: políticas públicas inteligentes. No nível nacional, desde 2004 o Estatuto do Desarmamento facilitou o combate ao crime e a redução das mortes por armas de fogo naqueles estados preparados para usar as facilidades proporcionadas pelo Estatuto. E há várias políticas públicas estaduais que também contribuíram. UPPs, Disque-denúncia, melhoria da perícia, a lenta e muito necessária melhoria das polícias, o aumento na taxa de resolução dos crimes e muito mais. Na minha opinião, contaram, e muito, a continuidade das políticas exitosas, a permanência de um Secretário de Segurança que é policial, estudioso e conhece o campo – como diferente das práticas tradicionais de entregar o cargo a um político, a um militar ou a um parente – e a redução da influência dos prefeitos na escolha dos delegados, um cargo que não pode ser político.

Avançamos muito, mas ainda falta muito: mais de trezentos homicídios em um só mês é uma cifra inaceitável. É, aproximadamente, o dobro do observado na Holanda em todo o ano, um país com população semelhante à do nosso estado.

Bons governos salvam vidas!

    GLÁUCIO SOARES        IESP-UERJ

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As Mortes por Armas de Fogo no Estado do Rio de Janeiro

 

O Estatuto do Desarmamento foi assinado no fim de 2003. Ele colocou nas mãos das polícias, das Secretarias de Segurança Pública e dos governadores, instrumentos importantes para reduzir as mortes por armas de fogo, em geral, e os homicídios, em particular. Em alguns estados o Estatuto foi bem usado, mas na grande maioria não. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais (durante oito anos), Pernambuco e, mais recentemente, o Espírito Santo, fizeram bom uso do Estatuto. Os resultados se medem estatisticamente, mas essas cifras frias significam vidas salvas ou vidas perdidas. Soares e Cerqueira mostraram que, no Brasil como um todo, aproximadamente 121 mil vidas foram salvas no Brasil pelo Estatuto.[i]

Porém, as armas de fogo castigaram o nosso Estado. Entre 1980 e 1995 cresceram aceleradamente: cada ano houve 425 mortes a mais do que no ano anterior. Essa é a média do período. No início, em 1980, houve 1.429 mortes; no fim, em 1995, houve 2.665. Mais de mil e duzentas mortes a mais. Nesses 16 anos foram mortas 84.427 pessoas com armas de fogo no Rio de Janeiro. Uma carnificina!

Figuras 1 e 2

Figura 1 Figura 2

Mudamos a série em 1995 acompanhando o sistema de classificação, mas a matança continuou: de 1996 a 2003, quando foi assinado o Estatuto, as mortes por armas de fogo continuaram a crescer, ainda que a um ritmo menos acelerado, de 115 mortes a mais por ano. 

Em 2004 o Estatuto mudou o panorama: as mortes, que haviam crescido tendencialmente durante 23 anos, baixaram de 2004 a 2014. Em 2003 (antes do Estatuto) foram 7.090; em 2014, foram 2.228. Vitória da vida!

 

Slide3

 

 

Qual a tendência? Cada ano, 436 mortes a menos do que no ano anterior. Uma bem-vinda inversão! Em 2014, voltamos ao patamar de 1987, quase trinta anos antes!

As Figuras 2 e 3 mostram  uma clara inversão da tendência anterior: como entre 1996 e 2003 as mortes por homicídio aumentaram e, a partir de 2004, passaram a diminuir. Só no primeiro ano foram salvas 551 vidas, 115 que não foram somadas mais 436, que foram subtraídas à morte. Em onze anos, mais de trinta mil vidas salvas (30.100) graças à combinação de políticas de segurança inteligentes e as facilidades oferecidas pelo Estatuto.

Os ganhos em vidas humanas podem ser aquilatados comparando a projeção da tendência anterior ao Estatuto com os dados reais posteriores ao Estatuto. São visíveis nas Figuras 4 e 5.

 

 

Slide4 

Slide5

 

 

Porém, as vidas poupadas se concentraram a partir de 2007: somente nesses oito anos foram salvas 28.624 vidas, 95% do total. A previsão era de quase 62 mil mortes, mas morreram 33 mil. A junção entre políticas de segurança inteligentes e o Estatuto tem benefícios multiplicativos.

Como diferente do Brasil como um todo, no Rio de Janeiro as mortes por armas de fogo decresceram e não voltaram a crescer. Ainda falta.

Desde 1980 morreram 190 mil por armas de fogo. Muitos de nós convivemos, durante anos, com o fantasma de uma guerra nuclear. A devastadora bomba atômica, lançada sobre Hiroshima, deixou perto de 70/80 mil mortos. As armas de fogo mataram mais do que duas bombas atômicas no Rio de Janeiro, e nós não vimos.

 

Figura 6

 

 

comparação com Hiroshima (1)

 

Concluindo: o Rio de Janeiro vive vários paradoxos. De um lado, políticas inteligentes, que usaram os benefícios do Estatuto, salvando 30 mil vidas, já são referência na Criminologia internacional; do outro, nova tentativa do lobby da bala em acabar com o Estatuto pelo mais torpe dos motivos: dinheiro. De um lado, instituições, como as UPPs, que salvaram muitas vidas nas comunidades, como demonstraram Cano, Borges e Ribeiro[ii]; do outro, uma campanha do próprio tráfico, anunciada há mais de três anos, para retomar o território perdido, usando violência contra a polícia e descrédito contra as UPPs; de um lado, um Estatuto que salva vidas, do outro lado, uma legislação e práticas judiciais medievais que permitem que homens jovens, até crianças, circulem com armas cortantes e perfurantes, assaltem e matem cidadãos, práticas indefensáveis que permitem que alguém com quinze passagens pela polícia por assalto, trafico e roubo estivesse solto, livre para matar. E matou.

Quem se responsabiliza pela morte de Jaime Gold? E pela dor incomensurável que seus familiares e amigos sentirão durante anos e anos?

Contradições do Rio de Janeiro.

 

GLÁUCIO SOARES         IESP-UERJ

 

[i] Estatuto do Desarmamento – um tiro que nao saiu pela culatra. Insight-Inteligência, n.68, 78-86.

[ii] Os Donos do Morro, FBSP/LAV, 2012.

Como deve ser nossa policia?

ENTREVISTA | Ricardo Brisolla Balestreri (exclusivo para web) 

O atual modelo de polícia é um desastre

Por Gilson Camargo


Foto: Renato Araújo/ ABr
Renato Araújo/ ABr | Extra Classe nº 177, de Setembro de 2013


Presidente do Observatório do Uso Legítimo da Força e Tecnologias Afins e especialista em Direitos Humanos, o ex-secretário nacional de Segurança Pública Ricardo Balestreri defende nesta entrevista – que complementa a reportagem Polícia é um caso de política, da edição impressa do Jornal Extra Classe, edição de setembro de 2013 – o modelo de multiplicidade de polícias especializadas e de ciclo completo de atuação, responsáveis por toda a atividade de prevenção, ostensividade, investigação, inteligência e instrução processual. Para ele, o modelo de polícia adotado pelo Brasil tem distorções que a tornam uma das piores polícias do mundo.


Extra Classe – Os questionamentos sobre a estrutura e a conduta das forças policiais não são novos, mas se intensificaram com os episódios de violência policial que têm marcado as manifestações de rua pelo país. Por que é necessário repensar esse modelo de policiamento?
Ricardo Brisolla Balestreri
 – Há uma parte da polícia que sempre se portou e se porta mal, mas há também outra, que sempre se portou e se porta bem, que sempre garantiu e garante nossa segurança, nossa integridade, nossos direitos. A parte que se porta mal, o faz por duas razões básicas: a primeira é a psicopatia de indivíduos que se infiltram em uma profissão de grande poder real, com o fito de explorar através da corrupção, de maltratar, de torturar, de matar. Para esses não há cura e as instituições policiais precisam estar muito alertas para não permitir o ingresso e a permanência; a segunda é a ignorância, a falta da construção de conteúdos morais e de capacitação técnica dos operadores. Nesse caso, a solução é uma educação de qualidade, que passe pela parceria com o mundo acadêmico, mas também pela reflexão motivacional interna, andragógica, filosófica, sociológica, que se deve fazer a partir das escolas de polícia. O modelo de polícia do Brasil é um desastre e é claro que isso incrementa o poder da parte doente e o desencanto e até certa impotência da parte sadia, mas mesmo dentro de tal modelo é inadmissível a má conduta policial.

EC – Qual modelo de polícia o senhor defende?
Balestreri
 – Defendo o modelo que viceja em praticamente todo o mundo democrático e civilizado: o de uma multiplicidade de polícias especializadas, de ciclo completo (isto é, responsáveis “do alfa ao Omega” pela atividade policial que lhes compete, incluindo prevenção, ostensividade, investigação, inteligência e instrução processual). Polícias que possam responder por completo às adequadas demandas do cidadão e que possam ser responsabilizadas in totum pelo desenvolvimento competente de suas atribuições. Ou seja, o contrário do que temos no Brasil: duas meias polícias estaduais que se atrapalham reciprocamente, criadas para depender burocraticamente uma da outra e para anular uma à outra (parece até que pela via inspiradora da máxima romana “dividir para governar”, o que garantiria, sempre, instituições de serviços mínimos de manutenção da “ordem”, mas nunca fortes e suficientes para atacar com autonomia o crime e a corrupção que podem chegar e chegam ao mais alto da pirâmide social). Nesse sentido, acho uma pobreza e uma banalidade a proposta que vai hegemonizando o senso comum até da intelectualidade, de uma “polícia única”. Polícia única é um perigo. Pode rapidamente se transformar em polícia de controle político. As ditaduras, em geral, é que gostam dessa ideia de polícia única. Várias polícias são importantes para o “intercontrole”, o controle recíproco, e o evitamento de um inchaço abusivo de poder. De maneira geral, os países do velho mundo contam com modelos policiais que poderiam nos inspirar, mas mesmo nos EUA e Canadá, por exemplo, há excelentes experiências que precisamos tomar em conta. O que não podemos é continuar insistindo na asneira que estruturamos aqui, tendo como resultados os ridículos índices, que temos, de responsabilização criminal. Devemos isso aos cidadãos e também aos bons policiais, que veem seu esforço e sacrifício sendo jogados fora todos os dias. Quando fui Secretário Nacional de Segurança pública “peitei” a discussão das reformas e com isso ingressei num verdadeiro inferno de pressões e ameaças corporativistas, de gente interessada a manter tudo como está, a fim de garantir velhos ganhos e privilégios. Por muito pouco, não fui “apeado” do cargo pelo mais infame dos lobismos, que há anos vêm cercando o executivo federal, os governos estaduais e o Congresso Nacional.

EC – No encontro do Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2012, a Dinamarca remendou ao Brasil a extinção da Polícia Militar, mesma posição da Anistia Internacional. O senhor concorda?
Balestreri 
– Parece-me que uma recomendação tão técnica, vinda de países e de instituições admiráveis, mas que desconhecem a profunda complexidade do Brasil e de seu sistema de segurança, é no mínimo uma imprudência. A ONU, a Dinamarca, a Anistia Internacional (que já dirigi no Brasil e que admiro profundamente), devem recomendar o respeito aos direitos humanos, a reforma do modelo policial arcaico, a fim de trazer maior eficiência e eficácia no atendimento da cidadania, e por aí devem se limitar. Sugerir fechar instituições, desconsiderando suas histórias e importantes ações (ao lado dos erros que também cometem), entrar em detalhes de forma, me parece uma atitude que revela o ranço do colonialismo cultural e do eurocêntrico que, sem querer, herdaram da velha ordem mundial. Os brasileiros é que precisam decidir o que querem manter, o que querem fechar, o que querem aperfeiçoar, o que querem criar. Não precisamos mais desse tipo de intervencionismo e tutoramento. Além do mais, tais posições revelam ignorância técnica, preconceito e desconhecimento de gestão complexa. Quem um dia comandou o sistema, como eu, facilmente avalia o absurdo de propostas sectárias como essa e sabe o que aconteceria ao Brasil se acordasse sem as suas polícias militares, os grandes sustentáculos “de escala” da nossa já combalida segurança pública. Emocionalismo e demagogia, mesmo quando não mal intencionados, só ajudam a afundar ainda mais o sistema. Eu tenho sido, há anos, um crítico público e ferrenho do que vem ocorrendo no Brasil, nessa área, mas creio que precisamos criticar com seriedade e apontar caminhos viáveis que não sejam os da mera desconstrução. As polícias militares possuem inúmeras qualidades e – a par dos erros – também acertam muito e efetivamente protegem os cidadãos mais simples. Contudo, urge que se libertem totalmente da “ideologia de segurança nacional” (que, como “currículo oculto”, ainda possui grande influência), da vinculação com as Forças Armadas (instituições respeitabilíssimas na democracia mas cuja lógica de “defesa nacional” só de forma muito oblíqua tem algo a ver com a lógica da “segurança pública”), dos regulamentos disciplinares anacrônicos afeiçoados à ditadura, das carreiras diferenciadas de praças e oficiais, que criam estamentos internos desprovidos de comunicação fluida e profissional. A elas, as PMs, precisam também ser facultados os mesmos direitos que são facultados ao conjunto da cidadania trabalhadora (como por exemplo o amplo direito à sindicalização, coisa burramente recusada pelos governos da ainda contaminada democracia brasileira, como se qualquer questão social – mesmo a questão social da polícia – pudesse ser historicamente criminalizada e contida à base de negações e truculências). Para tudo isso (que alguns chamariam de “conteúdo da desmilitarização”) se realizar, não é necessário que se percam a “estética militar”, nem os princípios da hierarquia e da disciplina (desde que legais, morais e impessoais). Creio mesmo que o povo deseja que sua polícia mais ostensiva seja facilmente e publicamente identificada pela farda e pelos ritos hierárquicos, sempre que isso não signifique a desumanização dos operadores. Mas mesmo tal coisa deve ser resolvida pelo povo brasileiro e por seus representantes (que, aliás, precisam melhorar muito).

EC – O Brasil tem o maior número de mortes violentas do mundo, segundo a ONU, com 50 mil casos por ano e um índice de solução de homicídios violentos de 8%. Por que a polícia brasileira é tão ineficiente?
Balestreri
 – Por tudo isso que dissemos acima, mais os pífios orçamentos federais e estaduais para segurança pública, além dos degradantes salários e condições de vida dos operadores do sistema. É muito difícil construir bons resultados em meio ao descaso da gestão pública. Nesse sentido, os bons policiais fazem um trabalho heroico, em meio ao mais completo abandono. Lembremos, ainda, para reforçar esse elenco, do infeliz sistema de polícias divididas e interdependentes e do inquérito policial como uma herança inútil (porque uma prévia de tudo o que deverá ser refeito na justiça), cara, extemporânea e violadora dos direitos humanos (uma vez que não garante o amplo direito ao contraditório), que cartorializa (ao lado de um irracional sistema de registro de ocorrências) a polícia judiciária brasileira. Os delegados no Brasil são espécies de juízes de instrução sem poder real que trabalham em algo como um sistema de ensaio e pantomima. Por isso, defendi que os delegados deveriam passar ao poder judiciário e tornarem-se juízes de instrução de fato e de direito (talvez aproveitando-se alguma inspiração do modelo italiano), onde então seus conhecimento jurídicos passariam a ter real valor. Poderiam, dessa forma, também levar um sopro de competência a um poder judiciário moroso, desacreditado, insuficiente e inapetente para a vida concreta. As polícias deveriam ficar reservadas exclusivamente à ostensividade, mediação social e prevenção, inteligência, registro simplificado e rigorosa investigação, e ter formação acadêmica própria à essas atividades. É claro que para tudo isso acontecer, precisaríamos passar a borracha no danoso Artigo 144 da Constituição Federal e reescrever todo o texto sobre segurança pública. Há, pela frente, um enfrentamento histórico, uma vez que os bandos corporativistas que circulam no Congresso Nacional não vão abdicar facilmente de seus privilégios e oportunidades “em prol da cidadania”.

Ricardo Balestreri há muitos anos estuda a Segurança Pública no Brasil. A SENASP, com Balestreri à frente, mudou muito, para melhor.

 

Gláucio Soares            IESP-UERJ

PARCERIA COM PESQUISADORA AJUDA DEPARTAMENTO DE POLÍCIA A GANHAR PREMIO

Crime, The Law And Your Safety nos informa que houve uma parceria muito criativa e produtiva entre uma doutoranda da Universidade de Cambridge e o Departamento de Polícia de Daytona Beach. A pesquisadora Bryanna Hahn Fox analisou uma amostra aleatória de 400 casos de roubo ou furto (burglaries) de residências, de negócios e de estabelecimento comerciais. Essa amostra foi tirada da lista de casos resolvidos pela polícia que ocorreram entre 2008 e 2009 no Condado de Volusia.  A parceria, da qual participaram detetives e outros policiais, inclusive alguns que trabalharam os casos, levaram à construção de quatro perfis dos criminosos que se especializavam em “burglaries”:  organizados, desorganizados, oportunistas e interpessoais. Os criminosos de cada um desses tipos se diferenciavam dos demais: sua história criminal era bem diferente e suas características pessoais também –  e cometiam crimes peculiares ao “seu” tipo. Os policiais foram treinados a reconhecer os tipos, o que os levou a melhor identificar os autores desses crimes, multiplicando as prisões por quatro.

Essa parceria levou o Deparatamento de Polícia a receber o prestigioso prêmio Excellence in Law Enforcement Research Award.

A pesquisadora se especializou em Psicologia Criminal e é professora assistente na University of South Florida em Tampa.

 

GLÁUCIO SOARES                 IESP-UERJ

MASSACRES SEMELHANTES, MORTES DIFERENTES

Creio que a maioria dos leitores foi informada a respeito do ataque em uma escola americana em Newtown, quando vinte crianças foram chacinadas numa escola.

Entretanto, poucos sabem que na China, poucas horas antes do ataque em Newtown, um maníaco fez um ataque semelhante contra crianças chinesas numa escola primária. A arma foi uma faca.

Os escritores americanos Beth Brogan e Jon Queally rapidamente notaram que, além da semelhança – um maníaco que ataca uma escola primária – há uma diferença muito importante. No ataque na China todas as crianças sobreviveram. Dois acontecimentos semelhantes, a treze mil quilômetros de distância um do outro, com resultados tão diferentes. Como explicar a diferença, que se traduziu em vidas de crianças, mortas num país, salvas no outro?


A diferença não reside no local: nos Estados Unidos foi a Sandy Hook Elementary School; na província de Henan foi uma escola semelhante. Há muita semelhança entre os atores: claramente maníacos surtados. E certamente havia muita semelhança entre as vítimas: crianças de uma escola primária.

Então, o que explica as diferenças – vinte mortes em um lado e nenhuma no outro? 

As leis! Ding Xueliang argumenta que as leis e as políticas de controle de armas de fogo explicam a diferença: a acessibilidade das armas com alto poder letal nos Estados Unidos, incluindo rifles, metralhadoras, explosivos e armas de repetição, proibidas ou restritas em praticamente todos os demais países desenvolvidos. Os Estados Unidos são a exceção e seus cemitérios, com um número muito maior de vítimas inocentes, são o seu resultado. Nenhuma das 22 crianças atacadas na China havia morrido até o fim daquela semana. A foto é de uma delas em recuperação.

Um ataque sem vítimas, improvável nos Estados Unidos; um ataque com mais de vinte vitimas, improvável na China.

As leis chinesas controlam armas e munições. É um controle sério. Proibição simples e pura. Ding Xueliang explica que havia semelhanças psiquiátricas entre os dois agressores, mas os incidentes ocorreram em países com leis muito diferentes. Uma faca, mesmo com mais de vinte centímetros de comprimento, não é páreo para uma Sig Sauer, nem para uma Glock, nem para um M4. Essas três armas eram legalmente possuídas pela mãe do rampage killer e foram encontradas na cena do crime. Aliás, a mãe do rampage killer foi assassinada pelo filho usando uma das armas que ela tinha. Ironia final numa cultura que idolatra as armas de fogo. As crianças que sofreram cortes e ferimentos na China sobreviveram e um número, que se supõe muito maior, fugiu.

É possível reduzir as mortes violentas através de políticas públicas inteligentes. O Estatuto do Desarmamento reduziu muito a taxa de crescimento das mortes com armas de fogo. Em números absolutos, O crescimento anual observado foi de 2.072 mortes, de 1996 a 2002, mas, a partir de 2003, ano da promulgação do Estatuto, o crescimento anual baixou para 203, salvando mais de mil e oitocentas vidas por ano!

E na China? As leis continuam salvando chineses de todas as idades. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes é baixíssima e continua baixando: foi de 2,3 em 1995; 2 em 2001 e 1,2 em 2008. Num país com o tamanho e as disparidades que tem a China, é uma grande conquista do direito humano mais fundamental, o direito à vida.

No que concerne as mortes intencionais violentas a China está no bloco dos países civilizados; os Estados Unidos, líder mundial em tantas outras áreas, estão fora dele.

Publicado n’O GLOBO de 5 de janeiro de 2013 sub o título de Fora da Ordem

 

 

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES   IESP/UERJ

Salvando Vidas

SALVANDO VIDAS
Quais os efeitos do Estatuto do Desarmamento? Afinal, as mortes por armas de fogo aumentaram, diminuíram ou não mudaram com o Estatuto?  
O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) provocou um debate que se prolonga até hoje; o referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, também. No Brasil, como nos Estados Unidos e outros países, um dos pontos mais discutidos e menos demonstrados do debate era o dos efeitos da legislação de controle das armas.
Infelizmente, essa discussão está repleta de afirmações gratuitas. Para chegar a qualquer conclusão válida, precisamos de uma comparação. Comparar o quê? Como era antes do Estatuto e como ficou depois dele.
Para fazer essa avaliação, precisamos de começar no início. Examinando os melhores dados que temos, a que conclusões chegamos?
1 – A primeira, que ressalta aos olhos, é a de que matamos um grande número de brasileiros com armas de fogo – mais de oitocentos mil, de 1979 a 2010. 806.650, para sermos exatos. Equivale a exterminar toda a população de uma cidade como Natal ou Teresina. Ou vaporizar as cidades de Caxias do Sul, Canoas e Alegrete, somadas. Ou a matar toda a população de São Leopoldo cada cinco anos e poucos meses.
2 – Por que começar em 1979? Porque foi o primeiro ano para o qual foram compiladas estatísticas nacionais. As estatísticas começam em 1979.
3 – Por que terminar em 2010? Porque foi o último ano para o qual as estatísticas estão completas. As de 2011 estão incompletas e o ano de 2012 ainda não terminou.
4 – Qual foi a tendência durante esse período como um todo, que vai de 1979 até 2010? Ao crescimento, com algumas variações e mudanças importantes. O número de mortes aumentou 1.152 por ano, a partir de 6.206.
5 – Por que a partir de 6.206? Porque as estatísticas começaram em 1979, mas as mortes vieram de muito antes. A interseção é 6.206. O ajuste entre essa previsão e a realidade foi quase exato. Usando essa fórmula chegaríamos à estimativa de que em 1988 haveria 17.136 mortes; a cifra real foi 16.573, 563 a menos do que o previsto. Os dados do período 1979 a 2010 permitem explicar 97% da variância, errando em apenas 3%. As mortes violentas por projéteis de armas de fogo (PAFs) são um fenômeno estável e previsível.
O aumento, não obstante, era na direção daquilo em que se transformou: uma catástrofe do quotidiano que, no final do período, estava matando perto de quarenta mil brasileiros TODOS os anos.
6 – Estável não significa imutável. Houve alguma modificação nesse ritmo da morte? Houve duas: o número de mortes empinou, piorou, a partir de 1999. Em poucos anos, o número anual de mortes aumentou em oito mil!
7 – Houve alguma melhoria? Houve. Esse aumento e os altos níveis de violência conscientizaram o país e sua elite política de que era preciso mudar. Em 2003 foi promulgado O Estatuto do Desarmamento. As cifras da morte baixaram a partir daí, cresceram devagar.
8 – Como calcular o efeito do Estatuto? Comecemos mostrando como NÃO calcular o efeito. Se escolhermos como base um ano ou período particularmente baixo estaremos viciando o resultado, aumentando artificialmente a tendência a ver aumentos no número de mortes; se fizermos o contrário, escolhendo como base  um ano ou período com muitas mortes introduziremos o viés oposto. A fonte de dados com melhor cobertura, a mais usada e a mais testada sobre mortes no Brasil é o Sistema de Informações sobre Mortalidade, o “SIM”, elaborado anualmente pelo Ministério da Saúde. Até 1995 o SIM usava uma classificação chamada de CID 9 mas, a partir daquele ano, a Organização Mundial da Saúde, OMS, passou a usar o código chamado de CID 10. O CID 10 é um pouco mais detalhado e apresenta algumas diferenças em relação ao CID 9. Algumas análises, preocupadas com a exatidão, separam os dois períodos. Durante este período, houve, também, uma campanha que estimulou a população a entregar as armas que estavam sob sua guarda. Em 2004 o governo federal lançou a primeira Campanha Nacional do Desarmamento, que, em menos de dois anos, recolheu mais de 450 mil armas de fogo.
9 – Como medir os efeitos do Estatuto e das medidas associadas com ele?
Precisamos de um “antes” e de um “depois”. Tomando por base todos os anos do CID 10, vemos que morreram por PAF (projéteis de armas de fogo) 26.481 brasileiros em 1996; 27.753 em 1997; 30.211 em 1998; 31,198 em 1999; 34.985 em 2000; 37.122 em 2001 e 37.979 em 2002, ano anterior ao Estatuto. As mortes por PAF aumentaram em mais de duas mil por ano (2.072) até 2002, inclusive. Esse foi um período de crescimento acelerado do número de mortes. Sem modificações como o Estatuto, qual a previsão que poderia ser feita para os anos posteriores ao Estatuto, seguindo a progressão anterior a ele? Seriam 42.123, em 2004;44.195;46.267;48.339;50.411;52.483;54.555,de 2005 a 2010, respectivamente. Devido ao crescimento observado antes do Estatuto, mais de 200 mil brasileiros seriam mortos pelas armas de fogo.
10 – E com o Estatuto? O crescimento observado baixou dramaticamente, de 2.072 para 203 por ano, salvando mais de mil e oitocentas vidas por ano!
A prevenção de acidentes, quando feita por pessoas muito bem treinadas e competentes, tem salvado um número incontável de vidas mundo afora. O Brasil está, ainda, engatinhando na virtuosa política de salvar vidas. O Estatuto do Desarmamento foi um excelente passo nessa evolução.
GLÁUCIO ARY DILLON SOARES
IESP/UERJ
Versão sem gráficos publicada no Correio Braziliense

Salvando Vidas

SALVANDO VIDAS

 

Quais os efeitos do Estatuto do Desarmamento? Afinal, as mortes por armas de fogo aumentaram, diminuíram ou não mudaram com o Estatuto?  

O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) provocou um debate que se prolonga até hoje; o referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, também. No Brasil, como nos Estados Unidos e outros países, um dos pontos mais discutidos e menos demonstrados do debate era o dos efeitos da legislação de controle das armas.

Infelizmente, essa discussão está repleta de afirmações gratuitas. Para chegar a qualquer conclusão válida, precisamos de uma comparação. Comparar o quê? Como era antes do Estatuto e como ficou depois dele.

Para fazer essa avaliação, precisamos de começar no início. Examinando os melhores dados que temos, a que conclusões chegamos?

1 – A primeira, que ressalta aos olhos, é a de que matamos um grande número de brasileiros com armas de fogo – mais de oitocentos mil, de 1979 a 2010. 806.650, para sermos exatos. Equivale a exterminar toda a população de uma cidade como Natal ou Teresina. Ou vaporizar as cidades de Caxias do Sul, Canoas e Alegrete, somadas. Ou a matar toda a população de São Leopoldo cada cinco anos e poucos meses.

2 – Por que começar em 1979? Porque foi o primeiro ano para o qual foram compiladas estatísticas nacionais. As estatísticas começam em 1979.

3 – Por que terminar em 2010? Porque foi o último ano para o qual as estatísticas estão completas. As de 2011 estão incompletas e o ano de 2012 ainda não terminou.

4 – Qual foi a tendência durante esse período como um todo, que vai de 1979 até 2010? Ao crescimento, com algumas variações e mudanças importantes. O número de mortes aumentou 1.152 por ano, a partir de 6.206.

5 – Por que a partir de 6.206? Porque as estatísticas começaram em 1979, mas as mortes vieram de muito antes. A interseção é 6.206. O ajuste entre essa previsão e a realidade foi quase exato. Usando essa fórmula chegaríamos à estimativa de que em 1988 haveria 17.136 mortes; a cifra real foi 16.573, 563 a menos do que o previsto. Os dados do período 1979 a 2010 permitem explicar 97% da variância, errando em apenas 3%. As mortes violentas por projéteis de armas de fogo (PAFs) são um fenômeno estável e previsível.

O aumento, não obstante, era na direção daquilo em que se transformou: uma catástrofe do quotidiano que, no final do período, estava matando perto de quarenta mil brasileiros TODOS os anos.

6 – Estável não significa imutável. Houve alguma modificação nesse ritmo da morte? Houve duas: o número de mortes empinou, piorou, a partir de 1999. Em poucos anos, o número anual de mortes aumentou em oito mil!

7 – Houve alguma melhoria? Houve. Esse aumento e os altos níveis de violência conscientizaram o país e sua elite política de que era preciso mudar. Em 2003 foi promulgado O Estatuto do Desarmamento. As cifras da morte baixaram a partir daí, cresceram devagar.

8 – Como calcular o efeito do Estatuto? Comecemos mostrando como NÃO calcular o efeito. Se escolhermos como base um ano ou período particularmente baixo estaremos viciando o resultado, aumentando artificialmente a tendência a ver aumentos no número de mortes; se fizermos o contrário, escolhendo como base  um ano ou período com muitas mortes introduziremos o viés oposto. A fonte de dados com melhor cobertura, a mais usada e a mais testada sobre mortes no Brasil é o Sistema de Informações sobre Mortalidade, o “SIM”, elaborado anualmente pelo Ministério da Saúde. Até 1995 o SIM usava uma classificação chamada de CID 9 mas, a partir daquele ano, a Organização Mundial da Saúde, OMS, passou a usar o código chamado de CID 10. O CID 10 é um pouco mais detalhado e apresenta algumas diferenças em relação ao CID 9. Algumas análises, preocupadas com a exatidão, separam os dois períodos. Durante este período, houve, também, uma campanha que estimulou a população a entregar as armas que estavam sob sua guarda. Em 2004 o governo federal lançou a primeira Campanha Nacional do Desarmamento, que, em menos de dois anos, recolheu mais de 450 mil armas de fogo.

9 – Como medir os efeitos do Estatuto e das medidas associadas com ele?

Precisamos de um “antes” e de um “depois”. Tomando por base todos os anos do CID 10, vemos que morreram por PAF (projéteis de armas de fogo) 26.481 brasileiros em 1996; 27.753 em 1997; 30.211 em 1998; 31,198 em 1999; 34.985 em 2000; 37.122 em 2001 e 37.979 em 2002, ano anterior ao Estatuto. As mortes por PAF aumentaram em mais de duas mil por ano (2.072) até 2002, inclusive. Esse foi um período de crescimento acelerado do número de mortes. Sem modificações como o Estatuto, qual a previsão que poderia ser feita para os anos posteriores ao Estatuto, seguindo a progressão anterior a ele? Seriam 42.123, em 2004;44.195;46.267;48.339;50.411;52.483;54.555,de 2005 a 2010, respectivamente. Devido ao crescimento observado antes do Estatuto, mais de 200 mil brasileiros seriam mortos pelas armas de fogo.


10 – E com o Estatuto? O crescimento observado baixou dramaticamente, de 2.072 para 203 por ano, salvando mais de mil e oitocentas vidas por ano!

A prevenção de acidentes, quando feita por pessoas muito bem treinadas e competentes, tem salvado um número incontável de vidas mundo afora. O Brasil está, ainda, engatinhando na virtuosa política de salvar vidas. O Estatuto do Desarmamento foi um excelente passo nessa evolução.

 

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES

IESP/UERJ

 

Versão sem gráficos publicada no Correio Braziliense