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O fim da bolsa-cemitério

O Estado do Rio de Janeiro teve uma iniciativa de inegável inteligência acadêmica e orçamentária. Isso foi há anos, quando a SBI descontinuou seu auxilio ao então IUPERJ e professores, alunos e staff permaneceram fieis à instituição, dispostos a enfrentar dificuldades e sofrer provações por um ideal institucional.

Embora parte considerável do orçamento da instituição fosse composta por dotações obtidas pelo Corpo Docente para suas pesquisas, faltava a garantia mínima de continuidade para que a instituição sobrevivesse.

“Enter” a ideia genial, a bolsa-cemitério! O então Diretor do IUPERJ, o então Reitor da UERJ e o então governador do Estado do Rio de Janeiro planejaram a sobrevivência do IUPERJ, agora com outro nome, IESP.

Porém, o corpo docente era constituído em parte significativa por professores da terceira idade, que continuavam ativos e muito produtivos, pesquisando, dando aulas, orientando, publicando. Uma geração que manteve a instituição por décadas no topo das avaliações da CAPES nas duas disciplinas, juntamente com a USP.

Como absorve-los? Foi, então, criada uma bolsa, que chamo irreverentemente de bolsa-cemitério, que exigiria três condições aos beneficiados: ter um currículo de peso, ter mais de setenta anos e, como requisito, um compromisso assinado de morrer em poucos anos, a limitante e temida Cláusula Terceira.

Era um grande negócio para o Estado e para a universidade, receber vários professores/pesquisadores de renome sem ter investido um real na sua formação, através de uma bolsa mensal (menos de cinco mil reais cada), que é uma fração de todos os proventos de um professor de qualquer universidade federal. Não causamos nem outros gastos – nós, as velhinhas e os velhinhos produtivos, não temos direito a férias, décimo-terceiro nem aposentadoria. Plano de saúde, só o do SUSto.

Esse programa foi suspenso. Não há previsão de volta. Falta de recursos… E, como tantos outros “desbeneficiados” do nosso estado, me pergunto: onde foram parar esses recursos? Em apartamentos luxuosos? Viagens abominavelmente caras? Hotéis cuja diária pagaria um mês da bolsa-cemitério? Anéis de centenas de milhares de reais? Afinal, um só anel pagaria por dois anos das bolsinhas-cemitério de todos nós, os sete matusalêmicos produtivos somados. Eita anelzinho caro…

Foram os Iates? Ou os jatinhos privados de fazer inveja ao Bispo Macedo? Cada um desses pagaria todos os gastos com todo o pessoal da instituição por muitos anos.

Essas são as mesmas perguntas que os funcionários se fizeram e fazem. Saíram quase todos. Também estavam na instituição há bastante tempo. Por amor e dedicação, aguentaram o máximo que puderam. São tão bons que, em época de recessão, conseguiram emprego rapidamente.

E os cidadãos menos privilegiados do nosso estado? Eles estão num nível de subsistência e, cotidianamente, não conseguem atendimento para satisfazer qualquer uma das suas necessidades básicas. Estão em situação muito pior do que a nossa.

Voltando a pensar na classe Senex, confesso que estou apreensivo. Com poucas exceções, a Terceira Clausula ainda não foi cumprida. Espero que, além de não pagarem a bolsa desde junho, não me venham exigir que bata o pacau…

Abba Methuselah

Como ler dados de pesquisas sobre suicídios, doenças, crimes e tudo o mais

É preciso saber ler dados para poder saber o que as pesquisas revelam. Ninguém nasce sabendo. É possível aprender em qualquer idade. Entre para a Escola de Dados. É grátis e em Português.

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um abraço

 

GLÁUCIO SOARES        IESP/UERJ

ASCENSÃO E QUEDA DO MARXISMO

ASCENSÃO E QUEDA DO MARXISMO

OS DADOS QUE SAEM DOS LIVROS

 

Esse artigo tem dois objetivos, um metodológico e outro teórico. Metodologicamente, proponho que o estudo da frequência com que uma teoria, seus conceitos, e autores foram usados em livros, revistas e outros instrumentos da mídia é um indicador útil da sua penetração no pensamento da humanidade. Não é um indicador exato, não é uma medida, mas sua utilidade será tão ampla quanto a imaginação do pesquisador e a do leitor. Como um benefício adicional, pode ser usado para verificar se os regimes políticos, as ideologias do grupo no poder, a censura e a repressão influenciam essa frequência.    

Teoricamente, parto do suposto de que o Marxismo foi a orientação teórica geral[1] mais influente e profícua durante várias décadas do século XX, declinando posteriormente. Se verdadeira, essa influência se refletirá na forma de uma curva, primeiramente ilustrando um período de expansão e, posteriormente, um período de queda. Se, como também hipotetizo, foi uma orientação supranacional, mais do que nacional e mais do que regional, essa curva deve estar presente em diversos países e regiões, aqui representados por idiomas. Seriam curvas semelhantes, mas não iguais, deixando espaço para as peculiaridades de uma nação, de uma região, de um grupo idiomático.

Hipotetizo, consistentemente, que há um conjunto de teorias, ideias e conceitos que atravessa fronteiras. Alguns cruzam tempo e espaço, outros não. O Marxismo cruzou tempo e espaço, tornando-se uma orientação sociológica e teórica geral, com penetração em muitos países[2]. A história de como essa orientação cruzou fronteiras, cresceu, atingiu um auge em países diferentes e entrou em declínio, é parte do que pretendo ilustrar.

A base de dados

Usei quatro corpora (Alemão, Espanhol, Francês e Inglês) na maior parte das análises para demonstrar a semelhança do percurso seguido pelo Marxismo. Os dados se referem às percentagens que as palavras que selecionei representam sobre o total de palavras do corpus em questão. Para exemplificar os efeitos da censura, também usei o corpus em russo. Posteriormente, usei o corpus em italiano, com resultados semelhantes

Usei, também, médias móveis trienais para suavizar picos e baixas que ocorrem em alguns anos e dificultam a visualização.

    Essa base de dados, valiosíssima, tem seus problemas e limitações.

·       A simultaneidade relativa das mudanças nos vários corpora.

Como o tempo dessas mudanças não ocorreu em um ou dois países, mas em muitos e em línguas diferentes, uso as mudanças para realçar o caráter supranacional do Marxismo. Além disso, como o timing do crescimento auge e declínio foi semelhante em publicações em diferentes línguas, há indicações de que os que escreveram livros (e provavelmente os que os leram) em idiomas diferentes foram afetados em grau semelhante por mudanças na história política e no pensamento político.

FIGURA I – Frequência relativa de menções ao marxismo em quatro corpora, medias trienais

 A Figura I mostra o uso da palavra Marxismo em quatro corpora: Alemão (Marxismus); Espanhol (Marxismo); Francês (Marxisme) e Inglês (Marxism). A base de dados diferencia entre maiúsculas e minúsculas. Porém, o uso da palavra com a primeira letra em maiúscula é muito mais frequente do que a palavra com todas as letras minúsculas. O início da ascensão foi depois da Primeira Guerra Mundial e, particularmente durante e logo depois da Grande Depressão, com exceção do Alemão, a partir da ascensão dos nazistas ao poder houve clara repressão a tudo o que fosse judeu, marxismo e comunismo. Análises adicionais mostram como autores judeus que eram referências obrigatórias nos seus campos, distantes do político, como Einstein e Freud, foram quase suprimidos na Alemanha, o que demonstra que esse instrumento reflete e pode captar condições políticas, sobretudo a censura e a repressão.  Nos demais idiomas, a ascensão do Marxismo continuou, sendo muito rápida nas décadas de 60 e 70. Porém, o ponto de inflexão, que marca o fim do ascenso e o início do declínio do Marxismo, foi semelhante, mas não idêntico, nos quatro idiomas. A análise dos dados serve para negar hipóteses amplamente aceitas, como a grande influência da Queda do Muro de Berlim sobre o conteúdo dos livros publicados.

·       A Queda do Muro e o declínio: as conexões são mais complexas do que parecem

Há uma tendência a associar causalmente eventos próximos no tempo. A Queda do Muro, seguida pelo colapso da União Soviética, é uma explicação intuitiva para o descenso do Marxismo. Porém, é um erro considerar a Queda do Muro em 9 de novembro de 1989 como um corte – ponto! – e não como a parte final e certamente indispensável para a compreensão de um processo mais extenso, mais antigo. Simbolicamente, é importantíssima; não obstante, não deve ser tomada como a origem do descenso do Marxismo, um processo que estava em andamento há vários anos. Esse repensar transfere a periodização de um dia, de um evento, a queda do muro, para um tempo bem maior.

Depois da criação das zonas, o trânsito de alemães entre as zonas era livre, mas muitos alemães orientais iam para a zona ocidental e ficavam. Em 13 de agosto de 1961, a fronteira foi fechada e começou a construção do muro, com uma extensão de aproximadamente 140 quilômetros. Em junho de 1962, começou a construção de um segundo muro, perto de cem metros para dentro da Alemanha Oriental. É, portanto, possível que o colapso do sistema tenha começado quase três décadas antes e que a construção do muro é um ponto de corte melhor do que a sua derrubada. O que dizem nossos dados? 

fim do ascenso, em Espanhol, começou no final da década de 70, como aconteceu em Francês e em Alemão. Em Inglês esse processo se deu poucos anos mais tarde.

rápido declínio se deu antes em Alemão e em Francês, logo depois em Inglês e pouco depois em Espanhol. Poucos anos separam o início do descenso nos quatro idiomas..[3]

Detalhando o que aconteceu com a palavra Marxismo em diversos corpora definidos por idiomas e grupos de idiomas ao longo do tempo,  no corpus Espanhol, o uso do termo Marxismo teve mais de um período de crescimento: acelerado de 1920 até pouco antes de 1940, quando teve um declínio de alguns anos, coincidente com a pré-guerra e a guerra; posteriormente, cresceu rapidamente durante três décadas (50, 60 e 70) e começou a declinar a partir de fins da década de 70 e início da década de 80. Nesse idioma, o declínio se iniciou antes da Queda do Muro e se acelerou depois, continuando em queda livre até a virada do século. Os dados mais recentes, incompletos, sugerem uma desaceleração do declínio, até mesmo um possível plateau em nível relativamente baixo a partir de 2000.

Em Francês o percurso foi semelhante: cresceu desde o início do século XX até o pré-guerra, declinou até a definição da guerra (a França estava ocupada), e explodiu no pós-guerra, até pouco antes da década de 80, quando declinou aceleradamente. O comportamento recente é semelhante ao corpus Espanhol.

Em Inglês, mais semelhanças: o crescimento acelerado durante a Grande Depressão; uma redução (menor do que em Espanhol e Francês) no pré-guerra e durante a guerra, com retomada posterior do crescimento. O ponto de inflexão que assinala o declínio também se situa antes de 1989, antes da Queda do Muro de Berlim. Porém, como diferente dos corpora anteriores (Espanhol e Francês), não se observa um plateau nos últimos anos e sim a continuação do declínio. O comportamento recente é semelhante ao do idioma Alemão.

Esses resultados mostram que o início do declínio do Marxismo foi anterior à queda do mundo de Berlim e ao colapso da União Soviética. Mostram, também, que os livros publicados em quatro idiomas seguiram curvas semelhantes.

·       Auge e declínio dos conceitos e subteorias.

 ‘

Aceitar que existem auges e declínios das teorias implica em aceitar o mesmo em relação às subteorias e aos conceitos que as compõem. Porém, algumas subteorias e conceitos podem ser absorvidas e integradas, ainda que em forma modificada, por outras orientações teóricas gerais. Os conceitos e subteorias influenciam e deixam sua marca na nova matriz, mas sua vinculação primária com a teoria em declínio determina, também, o seu declínio.

Selecionei três conceitos do Marxismo que foram menos absorvidos por outras teorias: proletariadoburguesia, e o conflito entre eles, a luta de classes. No corpus mais extenso, Inglês, o que aconteceu com esses conceitos?O proletariado é indispensável no Marxismo: é o grande ator do futuro. Seu em Inglês cresceu moderadamente entre a década de 1870 e a de 1910, explodindo até 1920, quando decaiu durante alguns anos para retomar o crescimento explosivo no final da década, até 1937, quando arrefeceu a Depressão. Nessa data se iniciou um amplo período com muita variação até 1972-73, quando o termo caiu rapidamente em desuso. Mais 25 anos e voltou ao nível de 1918. A única tendência discernível atualmente é o declínio. Sua inimiga teórica, predestinada à derrota na teoria marxista, fadada a ser superada no socialismo, a burguesia, conceitualmente seguiu um caminho semelhante. Cresceu paralelamente ao conceito de proletariado, oscilou entre meados da década de trinta e a de setenta, quando despencou. Em 2008, voltou ao nível de 1918.

 
conceitos fundamentais

 A consciência de classe, condição indispensável à revolução proletária, levaria à luta de classes  que teve uma evolução isomórfica às anteriores, com pequenas diferenças. Cresceu lentamente do inicio da década de vinte até meados da década de sessenta, acelerando até 1980, quandodespencou. Em 2008, o conceito foi menos usado, proporcionalmente, do que em 1920.A Figura II mostra visualmente que seu percurso na história dos conceitos foi semelhante. Cresceram a partir de 1880 até 1920, anos que foram seguidos de uma queda de alguns anos. Desde 1940 até fins da década de 50, nova queda, seguida de rápido crescimento. Finalmente, houve um descenso contínuo a partir de 1980. Os três conceitos covariaram durante muitas décadas, no meu entender porque configuram uma subteoria das principais classes e do conflito entre elas.Nas ultimas três a quatro décadas, houve um descenso da influência do Marxismo nas publicações. O fato desse descenso ter se iniciado antes e acelerado após a Queda do Muro de Berlim pode ser visto nas curvas referentes ao Marxismo e seus conceitos.

·       Efeitos da Repressão

 

 Talvez em nenhum corpus o efeito da ideologia que orienta uma ditadura, que censura e reprime, tenha sido tão claro quanto durante a Alemanha nazista. A análise do one-gram Marxismus mostra que, como diferente dos demais corpora, o crescimento acelerado do seu uso em livros teve que esperar o fim da guerra e a derrocada do nazismo. A censura e a intimidação foram mais amplas: por exemplo, as referências a autores judeus quase desapareceram durante o período nazista. É o que aconteceu, por exemplo, com Einstein e Sigmund Freud. Há censura, também, nas ditaduras de esquerda. Um exemplo é dado pela frequência das menções a Trotsky, que subiram e desceram de acordo com sua relação com o poder na Rússia. As referências a Троцкий subiram rapidamente de 1917 até 1929, junto com seu poder e influência. A fortuna de Trotsky mudou drasticamente em 1929, ano do seu exílio: as referências declinaram abruptamente a partir daí. Para contrastar, as menções a Trotsky no corpus Inglês não variaram com o exílio. Aumentaram continuamente desde meados da década de dez até o início da década de 40. Em 20 de agosto de 1940, Trotsky foi assassinado no México por ordem de Stalin. Num mundo em guerra e em ebulição foi gradualmente esquecido. As menções a suas ideias, ao seu trabalho e à sua obra se tornaram menos frequentes. 

·       O que os autores aprenderam

 O exame detalhado da frequência relativa com que conceitos aparecem em milhões de livros é uma ferramenta promissora. Usei essa ferramenta como um instrumento para sugerir que o Marxismo e alguns dos seus conceitos seguiram uma trajetória, que incluiu períodos de ascenso, rápidos ou não, estabilidade durante  poucos anos e um rápido declínio.  É um exame parcial da presença dessa importantíssima teoria num igualmente importantíssimo meio de comunicação, o livro. Há outros meios de comunicação, alguns antigos como jornais, revistas e rádio, e outros recentes como a televisão e meios eletrônicos. Ademais, há problemas insolúveis de amostragem: os livros examinados, ainda que milhões, não são amostra aleatória do total de livros publicados.Considerando todas as limitações dos dados e da abordagem, duas conclusões se impõem: nenhuma teoria sociológica geral teve tanto impacto, durante tanto tempo, como o Marxismo. O seu declínio não foi o resultado de sua substituição por outra orientação geral mais profícua. Não houve substituição. A segunda é que o Marxismo seguiu o percurso esperado de uma grande teoria: cresceu, dominou o pensamento sociológico durante décadas, chegou a um teto, foi afetado por acontecimentos na política mundial e nas políticas nacionais, e teve uma queda acelerada, que continuava no início do novo milênio. Não há uma substituta de porte semelhante. A grande orientação teórica geral foi substituída por várias orientações com escopo e ambições mais reduzidas.  Hoje, para os que necessitam de uma grande orientação teórica geral, a Sociologia e a Ciência Política estão órfãs, disciplinas em busca de um autor de referência obrigatória, de um caminho e de uma orientação amplos que orientem a criação de novas teorias.

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES[4]

IESP/UERJ 2012

Versão modificada foi publicada em Insight Inteligência

 


[1] Essa não é uma expressão jogada ao vento: ela foi trabalhada em detalhe por Robert King Merton em Social Theory and Social Structure, Free Press, 1968, que é uma versão ampliada da original de 1957.   

[2] Há quase meio século proponho que o Marxismo é uma orientação sociológica geral profícua. Não obstante, defendo, também, a ideia de que a transformação do Marxismo em doutrina política sabota a sua utilidade. Ver SOARES, G. A. D. . Marxism as a General Sociological Orientation. British Journal of Sociology, London, v. XIX, p. 365-374, 1968.

[3] Por fim do ascenso entenda-se, apenas, que o uso parou de crescer (sempre em relação ao total de palavras) e por rápido declínio um período acelerado de queda no uso do conceito Marxismo.

[4] Com a participação de Max Stabile