Arquivo da categoria: criminologia brasileira

O que está acontecendo com o crime em São Paulo?

Há duas semanas, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo tornou públicos os dados sobre a criminalidade no último trimestre. É um ato corriqueiro em paises com transparência e tem sido um comportamento contínuo no Estado de São Paulo há muitos anos. Mas, para vergonha nossa, ainda há estados no país que não divulgam os dados, há os que os maquilam e adulteram, ou os publicam com muito atraso.

Os dados divulgados talvez não causassem reação não fosse São Paulo o único estado brasileiro a exibir bons resultados há muito tempo: os homicídios vêm baixando há 29 trimestres e São Paulo é, hoje,uma referência internacional no controle da violência, juntamente com Nova Iorque, Bogotá, Medellín e alguns outros lugares. Ocupa, no Brasil, uma posição invejável. Há debates e discordância sobre o as causas dessa redução, mas não a respeito da sua existência.


O estado foi administrado pelo PSDB desde Mario Covas o que introduz uma dimensão político-partidária. Evidentemente, políticos e simpatizantes afiliados a outros partidos se sentem incômodos com o contraste entre o êxito paulista e o fracasso em tantos estados com governadores de seus partidos.

Os resultados recém divulgados não foram tão bons quanto os anteriores. Os criminólogos olham para isso com tranqüilidade; porém alguns políticos, inclusive jornalistas comprometidos politicamente,sem familiaridade com os dados criminais, expressaram sua alegria.

O que houve? Os homicídios cresceram 0,7% no Estado, porém na capital e na Grande São Paulo caíram 6%, uma queda considerável. Mesmo computando o pequeno aumento, a taxa paulista é, de longe, a mais baixa do país. Se os dados seguintes indicarem a mesma tendência à estagnação, muda a forma do fenômeno, que já é conhecida. Chegaram a um plateau.

O que é isso? Algo que acontece com quase todas as políticas públicas bem sucedidas: chegaram ao limite, até onde poderiam chegar. Aconteceu com muitas legislações e com as políticas públicas que se originaram nelas. A “antiga” Lei do Trânsito reduziu as mortes durante quase duas décadas, mas passou a provocar reduções cada vez menores. Alguns chamam isso de efeito-chão (não dá para baixar mais) que, visto positivamente, é um efeito-teto. Os efeitos desse tipo não indicam que chegamos ao limite do possível; indicam que chegamos ao limite dessas políticas.
A “nova” Lei do Trânsito provocou uma redução substancial de mais de quatro mil mortes (vidas salvas) só no seu primeiro ano. Infelizmente, a implementação das mesmas medidas ficou cada vez mais desleixadas e as mortes no trânsito voltaram a aumentar.

Quando há um grande crescimento ou uma grande redução, a composição dos homicídios se altera. Vítimas e assassinos não são os mesmos quando as taxas são altas e quando são baixas. Os homicídios não são todos iguais; há tipos muito diferentes: difere a vítima, difere o autor, difere a relação entre eles, difere a arma, difere o local da ocorrência e muito mais. No Brasil das últimas décadas, o crescimento dos homicídios tem uma vinculação íntima com o tráfico de drogas e de armas e com o crime organizado (sem colocar o grau de “organização” dos traficantes num nível empresarial). Quando há explosões de homicídios, as taxas de crescimento das mortes masculinas é substancialmente mais alta do que a das femininas. Quando houve redução rápida, ela foi maior entre os homens. As políticas públicas aconselhadas para paises com altas taxas de homicídio são claramente diferentes das aconselhadas para países com baixas taxas.

Quando o êxito das políticas anteriores tem rendimentos decrescentes significa que há necessidade de novas políticas, assim como de aperfeiçoamento das anteriores. Reduzidos os homicídios relacionados com o tráfico, cresce a significação relative dos homicídios entre íntimos. Porém, a
prevenção de homicídios entre íntimos difere muito da prevenção de homicídios associados ao tráfico etc.

Crimes diferentes não têm a mesma fidedignidade, nem o mesmo peso, daí a dificuldade em construir índices de criminalidade – nos mais simples, que simplesmente somam os crimes, o furto de um celular pesa tanto quanto um homicídio, um absurdo. As pesquisas de vitimização mostram que a sub-enumeração de alguns crimes é de tal magnitude que desfigura os dados. Um “crescimento” pode não significar um crescimento do crime, mas da confiança nas instituições. Há perigosos viéses seletivos: escolher os que mais cresceram para desacreditar a política
ou os que mais caíram para mostrar seus méritos. Um dos artigos publicados mostra um crescimento de 36% nos latrocínios, sem informar que os latrocínios representam uma percentagem pequena do total de mortes violentas intencionais. Naquele trimestre houve 94 latrocínios, 1001 homicídios culposos no trânsito, e 1207 vitimas de homicídios intencionais. A redução nos homicídios culposos no trânsito foi maior que a totalidade dos latrocínios no trimestre…

Outro dado importante tem a ver com a distribuição geográfica dos crimes com estatísticas confiáveis. Há muita variação entre as taxas dos municípios e das regiões paulistas, sugerindo fenômenos mais
localizados que requerem atenção concentrada: algo diferente está acontecendo nessas áreas.

Precisamos melhorar a qualidade dos dados e reduzir a sub-enumeração dos  crimes. Enquanto isso não acontece, temos que trabalhar com os mais confiáveis: os que deixam cadáveres, assim como furtos e roubos de veículos, dada a obrigatoriedade do registro para obter o seguro. E o leitor deve se informar para poder ler criticamente o que publica.


Gláucio Ary Dillon Soares

Publicado no Correio Braziliense

O que está acontecendo com o crime em São Paulo?

Há duas semanas, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo tornou públicos os dados sobre a criminalidade no último trimestre. É um ato corriqueiro em paises com transparência e tem sido um comportamento contínuo no Estado de São Paulo há muitos anos. Mas, para vergonha nossa, ainda há estados no país que não divulgam os dados, há os que os maquilam e adulteram, ou os publicam com muito atraso.

Os dados divulgados talvez não causassem reação não fosse São Paulo o único estado brasileiro a exibir bons resultados há muito tempo: os homicídios vêm baixando há 29 trimestres e São Paulo é, hoje, uma referência internacional no controle da violência, juntamente com Nova Iorque, Bogotá, Medellín e alguns outros lugares. Ocupa, no Brasil, uma posição invejável. Há debates e discordância sobre o as causas dessa redução, mas não a respeito da sua existência.

O estado foi administrado pelo PSDB desde Mario Covas o que introduz uma dimensão político-partidária. Evidentemente, políticos e simpatizantes afiliados a outros partidos se sentem incômodos com o contraste entre o êxito paulista e o fracasso em tantos estados com governadores de seus partidos.

Os resultados recém divulgados não foram tão bons quanto os anteriores. Os criminólogos olham para isso com tranqüilidade; porém alguns políticos, inclusive jornalistas comprometidos politicamente, sem familiaridade com os dados criminais, expressaram sua alegria.

O que houve? Os homicídios cresceram 0,7% no Estado, porém na capital e na Grande São Paulo caíram 6%, uma queda considerável. Mesmo computando o pequeno aumento, a taxa paulista é, de longe, a mais baixa do país. Se os dados seguintes indicarem a mesma tendência à estagnação, muda a forma do fenômeno, que já é conhecida. Chegaram a um plateau.

O que é isso? Algo que acontece com quase todas as políticas públicas bem sucedidas: chegaram ao limite, até onde poderiam chegar. Aconteceu com muitas legislações e com as políticas públicas que se originaram nelas. A “antiga” Lei do Trânsito reduziu as mortes durante quase duas décadas, mas passou a provocar reduções cada vez menores. Alguns chamam isso de efeito-chão (não dá para baixar mais) que, visto positivamente, é um efeito-teto. Os efeitos desse tipo não indicam que chegamos ao limite do possível; indicam que chegamos ao limite dessas políticas. A “nova” Lei do Trânsito provocou uma redução substancial de mais de quatro mil mortes (vidas salvas) só no seu primeiro ano. Infelizmente, a implementação das mesmas medidas ficou cada vez mais desleixadas e as mortes no trânsito voltaram a aumentar.

É importante saber que, quando há um grande crescimento ou uma grande redução, a composição dos homicídios se altera. Vítimas e assassinos não são os mesmos quando as taxas são altas e quando são baixas. Os homicídios não são todos iguais; há tipos muito diferentes – difere a vítima, difere o autor, difere a relação entre eles, difere a arma, difere o local da ocorrência e muito mais. No Brasil das últimas décadas, o crescimento dos homicídios tem uma vinculação íntima com o tráfico de drogas e de armas e com o crime organizado (sem colocar o grau de “organização” dos traficantes num nível empresarial). Quando há explosões de homicídios, as taxas de crescimento das mortes masculinas é substancialmente mais alta do que a das femininas. Quando houve redução rápida, ela foi maior entre os homens. As políticas públicas aconselhadas para paises com altas taxas de homicídio são claramente diferentes das aconselhadas para países com baixas taxas.

Quando o êxito das políticas anteriores tem rendimentos decrescentes significa que há necessidade de novas políticas, assim como de aperfeiçoamento das anteriores. Reduzidos os homicídios relacionados com o tráfico, cresce a significação relative dos homicídios entre íntimos. Porém, a prevenção de homicídios entre íntimos difere muito da prevenção de homicídios associados ao tráfico etc.

Crimes diferentes não têm a mesma fidedignidade, nem o mesmo peso, daí a dificuldade em construir índices de criminalidade – nos mais simples, que simplesmente somam os crimes, o furto de um celular pesa tanto quanto um homicídio, um absurdo. As pesquisas de vitimização mostram que a sub-enumeração de alguns crimes é de tal magnitude que desfigura os dados. Um “crescimento” pode não significar um crescimento do crime, mas da confiança nas instituições. Há perigosos viéses seletivos: escolher os que mais cresceram para desacreditar a política ou os que mais caíram para mostrar seus méritos. Um dos artigos publicados mostra um crescimento de 36% nos latrocínios, sem informar que os latrocínios representam uma percentagem pequena do total de mortes violentas intencionais. Naquele trimestre houve 94 latrocínios, 1001 homicídios culposos no trânsito, e 1207 vitimas de homicídios intencionais. A redução nos homicídios culposos no trânsito foi maior que a totalidade dos latrocínios no trimestre…

Outro dado importante tem a ver com a distribuição geográfica dos crimes com estatísticas confiáveis. Há muita variação entre as taxas dos municípios e das regiões paulistas, sugerindo fenômenos mais localizados que requerem atenção concentrada: algo diferente está acontecendo nessas áreas.

Precisamos melhorar a qualidade dos dados e reduzir a sub-enumeração dos  crimes. Enquanto isso não acontece, temos que trabalhar com os mais confiáveis: os que deixam cadáveres, assim como furtos e roubos de veículos, dada a obrigatoriedade do registro para obter o seguro. E o leitor deve se informar para poder ler criticamente o que publica.

Gláucio Ary Dillon Soares

Publicado no Correio Braziliense

Novas vítimas, velhos erros

NOVAS VÍTIMAS, ERROS ANTIGOS

No Rio de Janeiro, as vítimas mudam, mas o padrão é o mesmo: cidadãos, inclusive crianças, mortos por policiais incompetentes e truculentos. São tragédias que se repetem há décadas. Uma consulta aos jornais de diferentes anos mostra que os erros policiais que provocam mortes de inocentes são parte do cenário carioca. Não são novidade: mudam os nomes, mas os erros são os mesmos. Os erros e a truculência da polícia precedem o governo de Sérgio Cabral e não dão sinal de que terminarão.

O teste T, com um valor de 24267, 57 e dois graus de liberdade, nos dá uma probabilidade de que o número de vítimas catalogadas como ‘autos de resistência”  em 2006 e 2008 (até abril, inclusive) seja devida ao acaso é menor do que 1 em dez mil (P<0,0001). Houve uma mudança na política.

O teste T, com um valor de 24267, 57 e dois graus de liberdade, nos dá uma probabilidade de que o número de v�timas catalogadas como ‘autos de resistência O enfrentamento entre policiais e o crime organizado também é antigo, mas sua intensidade aumentou. Fala-se de uma política de enfrentamento. Existe? As autoridades negam, mas parece que sim. Um indicador é o crescimento dos autos de resistência, nome dado às mortes de criminosos por policiais: nos quatro primeiros de 2008 foram 502, um aumento considerável sobre os 329 no último ano da gestão anterior. O aumento, considerando a população, não é devido ao acaso. Os testes de significância estatística mostram  que a probabilidade de que seja devido ao acaso é menor do que uma vez em mil. Políticas de enfrentamento raramente são unilaterais: o crime organizado também muda o seu comportamento e também partiu para o enfrentamento. A construção de bunkers e de muros com pequenas janelas para armas que controlam o acesso a morros onde há tráfico mostram uma postura diferente da anterior, quando os traficantes desapareciam quando a polícia entrava, voltando poucos dias depois.

Há vários resultados positivos das políticas que estão sendo aplicadas: os roubos de veículos foram reduzidos de 11.928 para 9.557 e os furtos de veículos de 7.373 para 7.146. O acaso também não explica essas mudanças: políticas mais eficientes e inteligentes estão sendo aplicadas.

A queda dos homicídios dolosos também foi significativa. O valor de t, 172.224,4048, com 2 graus de liberdade e um erro padrão da diferença de 83,513, diz que a chance de ser devida ao acaso é menor do que uma em dez mil (p< ,0001). Um bom resultado que, se continuar, salvará muitas vidas.

A queda dos homic�dios dolosos também foi significativa. O valor de t, 172.224,4048, com 2 graus de liberdade e um erro padrão da diferença de 83,513, diz que a chance de ser devida ao acaso é menor do que uma em dez mil (p< ,0001). Um bom resultado que, se continuar, salvará muitas vidas.O número de homicídios também foi reduzido, de 2.187 para 2.030, e o de latrocínios de 85 para 65, ambos estatisticamente significativos. Porem, os ganhos com a redução dos homicídios e dos latrocínios foram numericamente compensados pelo crescimento dos autos de resistência. Alguns leitores cariocas, afetados pelo alto nível de crimes e violências, podem ver nisso uma troca benéfica, de mortes a menos de cidadãos por mortes a mais de bandidos. Contudo, essa perspectiva viola o conceito de cidadania: os bandidos são, também, cidadãos. Devem ser tratados de maneira dura, duríssima, dentro da lei, mas sua cidadania é intocável. A luta contra a impunidade passa pela luta contra leis frouxas e juízes lenientes, mas não passa pela abolição da cidadania e dos direitos humanos. Transferir o julgamento de criminosos para os policiais de uma polícia notoriamente mal-treinada, com uma ampla banda podre, resultou na sucessão de mortes de inocentes e continuará provocando outras. É um fenômeno triste e repugnante que acontece em vários estados.

Precisamos repensar as polícias militares. Em muitas polícias, a entrada se dá por baixo e não há limite ao ascenso. A estrutura militar significa que há barreiras praticamente intransponível entre oficiais, de um lado, e os demais, inclusive os sub-oficiais. O teto baixo desestimula os que não entram por cima. A modernização das polícias implica em modificar o caráter imitativamente militar, suprimindo a barreira entre os dois grupos. A possibilidade de progresso dentro da corporação dificulta o desânimo e a corrupção.

O treinamento, por sua vez, deve ser uma atividade contínua. Não basta aprender as técnicas em voga. Elas ficam rapidamente obsoletas. É necessário aprender as novas e, inclusive, treinar e praticar habilidades antigas.

Contudo, não devemos atribuir as deficiências somente à estrutura da instituição, levando em consideração outros fatores, inclusive culturais. Há uma resistência cultural à aprendizagem por parte de muitos recrutas, e ao uso de alguns equipamentos. Até o uso do colete é considerado por alguns como “frescura”. Não podemos esquecer que os recrutas são provenientes de uma sub-cultura com baixo nível de civismo.

O que aconteceu não foi uma ação isolada. Lemos, quase diariamente, relatos de perseguições de carros e tiroteios, com vítimas ocasionais entre os bandidos, os próprios policiais e cidadãos inocentes, o que nos leva a crer que o combate armado ao crime, chamemo-lo de enfrentamento ou não, é prioritário, acima da segurança da cidadania.

Há resultados positivos na atual administração, mas também há erros que estão matando inocentes. Ou corrigimos os erros, ou teremos sempre novas vítimas.

Perda

A Criminologia Brasileira perdeu um membro de muita valia. Paulo Mesquita influenciou positivamente a vida de muitas pessoas; já doente, não se negava a ajudar os demais, inclusive desconhecidos que pediam auxílio com suas teses e dissertações. Era, sobretudo, um ser humano muito bonito.
Convido todos, amigos, conhecidos e desconhecidos, a que lhe dediquem uma oração.