Arquivo da categoria: familiares das vítimas

A GUERRA QUE A GENTE NÃO VÊ

Durante a Segunda Guerra Mundial, vários países europeus foram ocupados pelos alemães, com a participação de seus prepostos locais. Alguns países foram ocupados durante anos e os alemães eram presença constante na vida da população local. Um resultado foi uma certa “normalização” da presença dos alemães no cotidiano da população local. Parte da normalização incluía o estabelecimento de relações cordiais e até de amizade entre alemães e locais, inclusive de flertes e namoros dos alemães com mulheres locais. A bem da verdade, essa situação foi facilitada pelo preconceito de parte significativa da população local contra os grupos e minorias perseguidos pelos nazistas. Nas campanhas de extermínio, olhavam para o outro lado ou usavam o argumento da sobrevivência.

Os que lutavam contra os invasores não viam essa convivência com bons olhos. Terminada a guerra, houve represálias contra os que haviam convivido pacificamente com os alemães. Acusavam os colaboradores, com muita razão, de se beneficiarem com a invasão do país. Algumas dessas reações encontraram um caminho até a literatura, o teatro e o cinema. Quem não se lembra da punição, raspando a cabeça das que haviam socializado com os alemães?

Muitos analistas competentes do crime no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular, não gostam do uso do termo “guerra” para descrever campanhas contra o tráfico, contra facções, contra o crime. Com razão. Não obstante, o conceito de guerra foi ampliado há décadas para incluir as lutas letais contra adversários políticos e ideológicos do mesmo país, da mesma nacionalidade. Surgiram expressões novas, como guerra interna e semelhantes.

Infelizmente, em muitas comunidades podemos observar comportamentos semelhantes, talvez ainda mais extremos. Há poucos anos, Roberto que nascera e crescera no Alemão, e fora à escola com quase todos os próximos da sua idade, jogara futebol com eles, viu seus amigos de criança se dividirem em grupos antagônicos, intolerantes uns com os outros. Foi ameaçado e pressionado para se filiar a uma das facções e não ter qualquer contato com os membros do outro grupo. Não levou as ameaças em sério: afinal, todos cresceram juntos. Roberto foi morto com cinco tiros na cabeça. Tinha 18 anos.

Agora me chega a notícia de duas menores que foram assassinadas porque teriam sido vistas na companhia de policiais. Outra que foi “levada pelo tráfico” e desapareceu. E de seu avô, que foi expulso da comunidade. Se ficar, morre – essas não são ameaças vazias.

Gente, a vida é sagrada!

O nosso Rio… Além das lutas entre facções, de ter vivido uma estupida declaração de guerra sem quartel ao tráfico, agora vive uma estupida guerra declarada pelo tráfico para reconquistar o território perdido.

E a população das comunidades é a mais afetada, a que mais sofre.

 

GLÁUCIO SOARES    IESP-UERJ

O Rio de Janeiro tem jeito!

O Rio de Janeiro passou, em algumas décadas, da próspera capital da República a um símbolo da decadência no Brasil. A transferência da capital e a unificação do estado, feitas por razões de conveniência política, minaram a cidade. Em tempos atuais, abutres de outros estados procuram usurpar os frutos do pré-Sal que pertence aos estados litorâneos do Sudeste. Mas não há sudestinos, e como não há uma identidade, não há uma política regional dos estados que compõem o Sudeste. Separados, estamos perdendo para os comedores de carniça.

O Rio de Janeiro vivia no passado, tendo perdido boa parte da influência política e econômica. Sem presente e sem futuro, o passado era o tempo obrigatório em que os verbos eram conjugados. O Rio foi; o Rio era… A decadência era o símbolo da cidade. Administrações estaduais e municipais ineficientes, algumas marcadas pela corrupção, pouco fizeram para recuperar o Rio. Com a corrupção, que chegou a minar a confiança dos cariocas nos seus governantes e na sua própria polícia, vieram suas companheiras inseparáveis, a droga e a violência.

Em poucos anos, o Rio ficou irreconhecível. O medo, sentimento de menor importância para nós que nascemos e crescemos nessa cidade há muitas décadas, passou a acurralar a população.  O Rio tornou-se cheio de bolsões de violência, de lugares proibidos, de horas perigosas. E as estatísticas mostravam o preço que estava sendo pago pela população do estado, em geral, e da cidade, em particular. Cresceram os crimes, explodiu a violência. Acompanhando Bogotá, o Rio de Janeiro se transformou em símbolo do que há de pior: corrupção, ineficiência, incompetência e violência. Explodiram os homicídios. Muitos concluíram, como chegaram a afirmar os amigos peruanos, “no hay salida”. Não tem jeito. Em Bogotá, três administrações, duas de Antanas Mockus e uma de Enrique Peñalosa mostraram que dar a volta na história e recuperar uma cidade era uma tarefa possível.   

A decadência era visível em todas as partes, inclusive nos hospitais e postos de atendimento. Até pouco tempo atrás, um problema visitava a as matérias de realce da mídia carioca: os recursos hospitalares, que já eram escassos, eram consumidos pelo tratamento das vítimas da violência. Não sobravam médicos; não sobravam enfermeiras; não sobravam leitos, nada: os recursos eram – e tinham que ser – absorvidos em grande parte por vítimas necessitadas de cuidados imediatos, com um tiro no peito. Fora dos hospitais, filas gigantescas de pacientes comuns, alguns urgentes, mas vítimas de doença insidiosa e não da violência.

Mas tem jeito, sim. Em menos de cinco anos, o quadro mudou. Nas quatro dos maiores hospitais com emergências especializadas (capitaneadas pelo Souza Aguiar e pelo Miguel Couto), o atendimento a baleados caiu quase pela metade, comparando o período de janeiro a março desde ano, inclusive, com de 2009. De acordo com a reportagem d’O Globo, as vítimas letais de armas de fogo que morreram nos hospitais públicos e privados da cidade do Rio de Janeiro caíram 41%.

Olhando em detalhe para os números absolutos, vemos que quase trezentas vidas humanas foram salvas somente nesse período.

Embora, sabidamente, o atendimento hospitalar brasileiro, dos estados e dos  municípios esteja em níveis muito baixos, as estimativas para o Rio de Janeiro  mostram uma situação muito melhor, sem aumento de recursos (que continua necessário para que atinjamos níveis civilizados). Um paciente de trauma custa caro, podendo chegar a alguns milhares de reais por dia, tudo incluído. Esses recursos estavam sendo tirados de outras áreas, cujo atendimento ficou mais e mais deficiente. As fotos de pessoas chegando de madrugada ou na noite anterior na ânsia de garantir vaga, de pessoas desfalecendo nas filas e até morrendo nelas estão gravadas nos olhos de todos os que lêem jornais, assim como nos dos que vêem televisão.

E as estatísticas demonstram a queda da violência em todo o estado, particularmente do pior dos crimes, o homicídio. Morre-se menos, vive-se mais e com menos medo.

O Rio de Janeiro começa a reacender a esperança no coração dos seus cidadãos. Em boa hora, Fabio Giambiagi e André Urani captaram esse momento noseu livro Rio: A hora da virada.

Sob o olhar atento e ganancioso dos abutres, estamos dando a volta na história. O Rio de Janeiro tem jeito.

GLÁUCIO SOARES

IESP/UERJ


O EFEITO CINDERELA

Madrastas e padrastos tem má fama. Chega-se a falar do Efeito Cinderela, história clássica, generalizada para todos menores abusados(as) por padrastos ou madrastas. O tema voltou às manchetes no Brasil devido a caso ainda não solucionado que engendrou muitas afirmações estapafúrdias.

O que se sabe sobre isso?

Martin Daly e Margo Wilson são nomes de referência que deram seriedade acadêmica ao Efeito Cinderela. Estimaram as taxas de homicídios por espancamento de menores de 5 anos pelos padrastos e pais biológicos no Canadá, usando dados de 1974 a 1990. Seus resultados mostram não uma, mas duas relações: os que se casam formalmente matam menos do que os que simplesmente se juntam e os pais biológicos matam menos do que os padrastos. As diferenças que encontraram não são pequenas. A “formalidade” do casamento conta muito: entre os pais biológicos ela reduz a taxa de mortalidade por milhão de díades pai/filho(a) de 30,6 para 1,8 e entre os padrastos de 576,5 por 70,6. Vejam quanto essas duas variáveis, casar no papel e ser pai biológico reduzem o risco de homicídio da criança: de 576,5 num extremo para 1,8 no outro. O pior cenário para a criança é o da mãe solteira ou descasada que tem inúmeras relações informais com outros homens. Esse risco é ainda maior se a saúde da criança for pobre.

Por que o casamento com papel produz menos violência? Há os que vêem no papel um sinal de compromisso (quando não há coação); outros propõem que há variáveis associadas com o papel (como recursos e classe social) que podem contribuir para explicar. Porem, para explicar o porquê da diferenças entre pais e mães biológicas e não biológicas, há muito dissenso. Daly e Wilson enveredaram por explicações baseadas na contestadíssima biologia social.

O contraste com a escola sueca é grande. Johanna Nordlund e Hans Temrin, juntamente com Susanne Buchmayer e Magnus Enquist, estão entre os principais opositores da biologia social.  Argumentam que, pelo menos na Suécia, o Efeito Cinderela não existe. Afirmam que o homicídio de menores não é um fenômeno homogêneo: inclui tipos e variedades.  No mais freqüente, a morte da criança resulta de um conflito entre os pais. O filhicídio por pais biológicos vai acompanhado de conflitos domésticos, e até uxoricídio e suicídio com maior freqüência do que quando os assassinos não são os pais biológicos. Padrastos e madrastas, ao contrário, tem risco mais alto de matar enteados e enteadas em conflitos diretos com eles do que os pais genéticos. Uma parte significativa das crianças pequenas mortas deriva de outro fenômeno, chamado eufemisticamente de H/S, homicídios seguidos de suicídios, e em geral são mortas pelas mães. Já quando homens matam e se suicidam, as vítimas são predominantemente suas companheiras ou ex-companheiras.

Outras pesquisas mostram que há outros fatores que contam. Um deles é a presença de filhos do segundo casamento: aumenta o risco. Nos casos em que, os pais ou as mães tenham filhos no novo casamento, o enteado(a) tem um risco maior de abuso, violência e abandono antes de morrer assassinado. Raramente se trata de um “instante infeliz”: segundo Harris e colaboradores, há um percurso, que deixa rastros e pode ser longo antes da violência final. Amigos, parentes e vizinhos têm alguma chance de uma intervenção salvadora: saber que alguém mais está atento intimida alguns dos agressores potenciais e reduz o risco de morte. Há sinais: crianças machucadas que não são levadas rapidamente ao médico ou ao hospital; tentativas de ocultar as lesões; explicações vagas ou contraditórias sobre como aconteceram; crianças que pedem comida ou aparecem na hora do almoço ou do jantar; crianças sós na rua tarde da noite, entre outros. As crianças podem manifestar comportamentos variados que indicam abuso: extrema passividade, fadiga, assim como agressividade e negatividade. É preciso, também, observar pais e mães porque é alta a incidência de doenças mentais entre mães que matam seus filhos, sobretudo entre as que matam filhos maiores.

O abuso sexual de meninas por pais biológicos e por padrastos também tem correlatas diferentes: no caso de abuso pelos pais, a presença de drogas e álcool, assim como de conflitos familiares e de renda baixa é muito maior. Porem, os padrastos que abusam de suas enteadas não têm essas características. O abuso sexual de menores, inclusive por outros menores, é muito comum, mas poucos chegam ao conhecimento das autoridades.

E a cultura, conta?

Conta, e muito. Primeiro, as taxas de infanticídio e de homicídio de menores variam muito entre os países, e em geral variam junto com as taxas nacionais de homicídio. Há países mais e menos violentos. Segundo, os tipos mais freqüentes de mortes de menores não são os mesmos. É o argumento de Nordlund e Temrin.

O oposto também acontece: há filhos que matam pais (e irmãos, tios, avós etc.). Kathleen M. Heide
analisou parricídios e matricídios nos Estados Unidos, concluíndo que ainda se sabe pouco sobre esse crime: na média, os que matam mães e madrastas são muito mais jovens do que os que matam pais e padrastos; nos Estados Unidos, os hispânicos raramente matam as mães etc. Não se sabe muito mais.

A grande maioria de padrastos e madrastas não rejeita, nem abusa dos filhos “da outra” ou “do outro”. Algumas das que rejeitam estão conscientes do problema.  Sentem rejeição pelo enteado ou enteada, mas não a entendem, nem a aceitam. Sentem vergonha do próprio ciúme patológico. É tema freqüente em terapias.

A antítese da rejeição é a adoção. Milhares de crianças são adotadas diariamente neste mundo. Conheço muitas que o foram, algumas por pessoas com poucos recursos. Uma, em Arcoverde, ganha o mínimo e adotou cinco. Essas crianças recebem o amor, o carinho e a atenção que os pais lhes negavam. Uma delas criou um termo para se referir à mãe adotiva: minha boastra.

Gláucio Ary Dillon Soares

IESP/UERJ

Publicado no GLOBO

FILHOS DEMAIS OU PAIS DE MENOS?

Há quatro anos, César Maia atribuiu a responsabilidades pelos crimes e violência às altas taxas de natalidade das classes menos favorecidas. É a velha tese da “explosão demográfica”. Porém, no Brasil, a “explosão demográfica” já aconteceu: as taxas de natalidade de todas as classes entraram em queda livre há décadas. A taxa de natalidade, que era 4,4, em 1950 caiu para 2,1 em 1998, menos da metade. Essas taxas decresceram, mas as de homicídios cresceram. Há outro argumento, mais sofisticado, baseado nas migrações internas. Quando é grande o número de jovens as instituições de controle social ficam oneradas: as escolas (que pioram a qualidade e reduzem os serviços e a sua personalização), as facilidades de recreação, esporte e lazer, os serviços sociais, a própria polícia e as oportunidades de emprego. Há mais crianças por adulto na família, por sala de aula, e por cada pessoa que trabalha nos vários serviços de atendimento.Porém, a estrutura e a qualidade da família são importantes. O sexo irresponsável não se refere apenas às doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez prematura, mas ao que acontece depois da gravidez. Muitos jovens pais enfrentam problemas econômicos, mas outros são, apenas, irresponsáveis, preocupados com eles mesmos, ausentes por opção.A ausência dos pais contribui para a delinqüência e o crime dos filhos. Para William S. Comanor, da Universidade da California, em Santa Barbara, a ausência paterna dobra a probabilidade de cometer crimes. Willie J. Edwards, da Texas A & M University, contrastou uma amostra de delinqüentes e outra de não delinqüentes: 65% dos delinqüentes não tinham uma figura paterna presente, em contraste com 15% dos não delinqüentes. É uma tradição estabelecida em psicanálise: William Healy, no clássico The Individual Delinquent, publicado em 1915, já estimava que 49% dos delinqüentes provinham de famílias incompletas. August Aichorn, um psicanalista do círculo freudiano, foi mais longe, relacionando a ausência paterna não apenas ao crime, mas também à doença mental, ao abuso emocional e à privação de amor e sentimentos afetivos positivos.Uma meta-análise de 50 pesquisas feitas entre 1925 e 1985 encontrou correlações consistentes entre famílias incompletas e uso de drogas, fugas da casa, ausência escolar e vários crimes. A associação era válida para todos os grupos: meninas e meninos, brancos e negros.A ausência paterna gera problemas que foram constatados em muitos países. Na Grã-Bretanha meninos e adolescentes (11 a 15 anos) que viviam com os pais apresentaram uma taxa de 5,7 de desordens comportamentais, porém, os que viviam com apenas um dos pais apresentavam uma taxa três vezes mais alta, 17,6. Assim, a estrutura da família conta. Porém, há mais: várias pesquisas demonstraram a influência negativa da violência doméstica, da disciplina excessiva, violenta ou inconsistente e da ausência de supervisão e contato mesmo em famílias “completas”. A qualidade da vida familiar também conta muito. Patricia Van Voorhis, da Universidade de Cincinnati, mostrou que os atributos que mais se correlacionam com o crime são a falta de afeto e carinho, falta de supervisão e orientação, conflito, abuso e pouco prazer e diversão em casa. Binder, Géis e Bruce, no seu clássico livro Juvenile Delinquency notaram que a falta de afeto e de supervisão se relacionam com consumo de drogas e crimes contra a propriedade, ao passo que os efeitos do abuso e da violência doméstica aparecem mais tarde e estão relacionados com crimes violentos.Muitos jovens recorrem ao crime por não terem as qualificações para os bons empregos. A educação conta! Parte do efeito da família sobre o crime passa pela educação: os que crescem com famílias completas têm notas mais altas e taxas de deserção e absenteísmo mais baixas, assim como aspirações educacionais mais altas. Os efeitos da ruptura familiar são duradouros. Participei de um estudo de “meninos de rua” no DF, que confirmou essa relação: entre os que estudavam, 14% usavam drogas; entre os que não estudavam, 28% usavam drogas e entre os que não tinham escolaridade, 31% usavam drogas. Mostrou, também, relação entre a violência doméstica e o consumo de drogas: 40% entre os que foram vítimas de violência doméstica com objetos consumiam drogas; 33% entre os que apanhavam, mas sem objetos, baixando para 16% nos casos em que os meninos e meninas declararam não terem sido vítimas de violência doméstica.A ausência paterna também afeta a classe média e seus efeitos deletérios se fazem sentir em muitos jovens. O sucesso e o consumismo ocupam muitos pais e mães, restando pouco tempo de qualidade para os filhos. Os pais estão lá, mas suas funções não. Muitos jovens de classe média consomem drogas contribuindo com o dinheiro “do asfalto” para comprar armas que matarão alguém na favela. Pais ausentes ou indiferentes tanto no asfalto quanto no morro ajudam a tecer a teia de crime e violência que aprisiona as cidades e vitima seus próprios filhos.