“Sábado, às 8 horas estarei aqui”. Sábado, seu Francisco estava lá na hora marcada. Ele é jardineiro, do tipo que faz o “feijão com arroz”, mas quando marca, vai; quando promete, faz. Possui capital social, contando com uma extensa rede de clientes que confiam nele. Não falta trabalho, não falta ao trabalho. A sabedoria em lidar com seu Francisco consiste em não pedir que faça o que não sabe por que a resposta, honesta, é sempre a mesma: “isso eu não sei fazer, não senhor”. Seu Francisco também diz não quando a agenda não permite: “sexta não dá não, porque não tem lugar”. Seu Francisco mora na periferia, numa casa bem mantida, com padrões muito acima dos da vizinhança, a família não passa necessidades e seus filhos vão bem na escola. Repete o conhecido objetivo de que “meus filhos terão uma vida mais fácil do que a minha”. O retirante nordestino garantiu o futuro material dos filhos e, conscientemente, agrega: “se Deus quiser irão muito mais longe. O perigo é a bandidagem”. A confiança que ele inspira permitiu-lhe uma rede de pessoas que confiam nele e o contratam, a despeito do baixo capital humano.
É uma relação que repercute na Ciência Política: Putnam, em 1993, afirmou que “a confiança é um componente básico do capital social”. Sem confiança, não há como formar redes sociais. A confiança e o capital social são importantes para o funcionamento do país. Denise Salles enfatiza a previsibilidade; a confiança interpessoal é sua garantia. Com ela, contratos, leis e compromissos serão respeitados e os brasileiros trabalharão juntos e enfrentarão os problemas juntos. Na atualidade, é cada um por si e ninguém por todos.
O baixo capital social dos brasileiros é a ponta do iceberg de um conjunto de valores irresponsáveis que chega à criminalidade. A “Lei de Gerson”, que domina a sociedade brasileira de alto a baixo, zerou a confiança interpessoal no país. Exemplos do cotidiano: seu Jerônimo é um bom marceneiro. Com cursos e experiência, aprendeu a fazer boas estantes. Bom capital humano como trabalhador. Aceitou vir fazê-las em minha casa. Marcou quatro vezes, não apareceu, nem mesmo telefonou para avisar que não viria. Na quinta vez, depois de faltar, quando o encontrei tentou se justificar e ficou até irritado quando o interrompi, dizendo: “nem comece; não adianta”. Capital social zero. Seu Jerônimo não será jamais contratado nem indicado por mim.
Vi o excelente trabalho feito pelo Tadeu, outro marceneiro, na casa de um colega. Levei quatro bolos do Tadeu, o último a despeito de um telefonema dele, numa sexta, marcando o início do trabalho para a manhã seguinte. Manhã perdida, esperando o Godot marceneiro.
Não são apenas os marceneiros. Esse comportamento é um padrão social em muitas áreas de atividade e não uma característica exclusivamente de alguns setores ocupacionais ou de algumas pessoas. Minha experiência, e a de várias pessoas que entrevistei, mostra que ela se estende a muitos setores dos serviços e de outras ocupações, incluindo burocratas, advogados, médicos, professores, contadores, bombeiros-eletricistas e muito mais. Os compromissos não são honrados e a palavra muito menos.
A crise ética e moral não é, apenas, dos nossos políticos: é do nosso país, é de todos nós, e se revela nos dados sobre a confiança interpessoal. Somente um em cada dezoito brasileiros confia nos demais. A metade no nível uruguaio, perto de um terço do argentino. Percentualmente, para cada brasileiro que confia nos seus compatriotas, há sete americanos que confiam nos deles.
Como construir uma sociedade e uma polis onde ninguém confia em ninguém? Inglehart, em 1989, concluiu que a confiança se correlaciona positivamente com o PIB e com a democracia. Para ele, a confiança alavanca a democracia e o desenvolvimento econômico. Müller e Seligson, em 1994, defenderam a hipótese oposta: a democracia e o nível de vida explicariam a confiança. A possibilidade de endogenia é clara e é difícil saber o que causa o quê, sendo a influência recíproca uma hipótese plausível. É a minha.
Há casos que provocam indignação. No jazigo da minha família, como em quase todos, os corpos são exumados depois de alguns anos. Comprei, há quatro anos, com minha prima, urnas funerárias para colocar os restos mortais de meu pai e de meu tio. Quinta feira minha tia foi enterrada. Os restos mortais de meus pais e de meu tio estavam em sacos plásticos pretos, como os de lixo. Das urnas, nem sinal. Como são caras, setenta reais cada, imagino que foram vendidas. O administrador estava ausente do cemitério nas vezes em que estive lá, e a simpática secretária, como de praxe, não sabia nada de nada. Em uma das minhas visitas, num feriado, o cemitério estava fechado. É proibido morrer nos feriados. Naquele outrora bucólico município da orla fluminense, o cemitério e sua igreja, no alto de um morro, simbolizavam a derradeira paz. Hoje o município é conhecido pela violência e pela corrupção que marcam a costa do petróleo. A Lei de Gerson e a bandidagem não respeitam nem os mortos.
GLÁUCIO SOARES IESP-UERJ
Publicado n´O Globo em 21 de setembro de 2011