Há duas conclusões a respeito de abuso sexual de menores, confirmadas por muitas pesquisas em diferentes países:
Os familiares são uma percentagem alta dos autores e
O abuso sexual, particularmente o incesto, deixa marcas indeléveis durante muitos, muitos anos.
Hayes concluiu que os autores de 43% dos abusos sexuais de menores são familiares e em outros 33% são pessoas conhecidas. Os estranhos, de quem temos tanto medo, representam apenas um em cada quatro casos.
Quantos casos de incesto há? Não sabemos. Um conhecido especialista, David Finkelhor estima que, cada ano, dezesseis mil americanas são vitimas de incesto por seus pais. Porém, Matsakis considera essa cifra muito baixa porque os dados se referem a mulheres brancas de classe média.
A maioria dos abusos sexuais, particularmente dos incestos, não é delatada. Vanderbilt, outro estudioso, concluiu que as vítimas, a grande maioria crianças e jovens adolescentes, não entende o que está acontecendo e muitas negam que haja algo errado no que está acontecendo com elas. Muitas vítimas experimentam uma solidão e um medo profundos, achando que se delatarem o incesto ninguém acreditará, ou que serão culpadas por ele, expulsas da casa ou punidas severamente. E o incesto continua um segredo guardado a quatro portas, com conseqüências pesadas e duradouras.
No Texas, Edwall, Hoffman e Harrison pesquisaram quase seiscentas meninas adolescentes em tratamento por dependência química. Mais de um terço delas declararam que foram sexualmente abusadas; porém, nem todas o admitiram aos entrevistadores; seus conselheiros e psicólogos individuais acrescentaram mais uma em dez dependentes que fora abusada. Concluíram que a psicopatologia das que foram abusadas era mais séria e algo diferente, com mais alta freqüência de ideações e tentativas de suicídio e um profundo sentimento de vergonha.
É grande e dolorosa a lista de males que acometem as vítimas de incesto. Lindberg e Distad estudaram vinte e sete vítimas, constatando dependência química, tentativas de suicídio, isolamento e depressão. Consideram que esses comportamentos são respostas lógicas ao abuso sexual, e não apenas seus indicadores. Seriam tentativas de reduzir o estresse para reduzir a sensação de impotência causada pelo incesto.
As vítimas de abuso sexual, em geral, e de incesto, em particular, vivem em famílias disfuncionais, que são a origem de muitos problemas. Quanto o incesto agrava essas conseqüências e quanto cria outras? No Canadá, Hotte e Rafman averiguaram se o incesto afetava a saúde mental além da disfuncionalidade da família e, em caso positivo, em que áreas. Afinal, o incesto se relaciona tanto como causa quanto como conseqüência com a disfuncionalidade da família. Pesquisaram 57 meninas entre 8 e 14 anos de idade, todas de famílias disfuncionais. Metade delas eram vítimas de incesto. Usaram questionários e entrevistas semi-estruturadas. As vítimas de incesto tinham auto-estima mais baixa, relações mais problemáticas com suas mães, comportamentos e atitudes mais sexualizados e um nível de auto-agressão muito maior. Os autores concluíram que o impacto do incesto sobre meninas pré-púberes é muito amplo e destrutivo.
Usualmente, os que praticam o abuso sexual são homens , mas não sempre. Também há mulheres que abusam. O que acontece com as crianças abusadas por mulheres? Denov, no Canadá, examinou 14 vítimas, sete meninos e sete meninas. A maioria foi abusada pela própria mãe. Quase todos afirmaram que a experiência causou danos profundos, semelhantes aos encontrados entre as vítimas de abuso masculino: dependência química, automutilação, depressão, ódio, dificuldade em estabelecer qualquer tipo de relacionamento com outras mulheres e tentativas de suicídio.
Afinal, que tipo de família favorece o incesto? É, repito, um tema muito difícil de estudar. Herman e Hirschman, alertaram para a existência de tipos de incesto e de abuso. Compararam quarenta mulheres que mantiveram relações incestuosas com o pai quando eram crianças com outras vinte, cujos pais tiveram um comportamento sedutor, abusaram, mas não chegaram a manter uma relação incestuosa com elas. Há diferenças entre elas? Há semelhanças?
O padrão mais comum reunia um pai violento e uma mãe com doença séria e/ou crônica, vítima de violência por parte do marido. As mães das vítimas tinham muitos problemas mentais, mas as mães das que mantiveram relações incestuosas tiveram mais problemas com alcoolismo, depressão (que não tratavam), psicose, e gravidezes descontroladas. Eram incapazes de defender as filhas, o que sugere que muitos incestos não se consumam graças à intervenção da mãe. Quando a mãe não consegue defender a filha, o risco aumenta muito. Os dois grupos de filhas tiveram sérios problemas, que eram mais freqüentes e mais graves entre as vítimas de incesto completo: fugiram mais de casa, tentavam mais o suicídio e tinham mais gravidezes precoces.
Myers e Brasington, do Departamento de Psiquiatria da Universidade da Flórida, estudaram um caso de um pai que preparou sua filha e sua enteada para serem suas esposas, usando a religião como justificativa. Foi um caso judicial com repercussão pública. O pai perdeu a guarda e a custódia das duas a despeito de negar o acontecido porque havia vídeos das conversas entre elas e da polícia com elas. Não obstante não pode ser condenado por poligamia, incesto ou estupro porque a filha se recusou a testemunhar contra o pai, uma reação comum. Os vídeos e as entrevistas revelam que essas meninas enfrentavam algumas conseqüências psicológicas do abuso sexual e do incesto se considerando “esposas” do pai e do padrasto.
No imaginário de segmentos da classe média, a entrada no consultório de um terapeuta garante o início da recuperação. Depois da família e da religião, a terapia é a moradia da última confiança, o último abrigo. Não obstante, há terapeutas que se envolvem sexualmente com suas pacientes, inclusive com vítimas de incesto e estupro. Tão pouco é algo fácil de pesquisar. Armsworth entrevistou seis vítimas de incesto, que haviam mantido relações com seus terapeutas. Usou metodologia complexa, quali-quanti, juntando entrevistas qualitativas com a análise de clusters. Suas conclusões mostram a devastação causada: essas mulheres cresceram num ambiente no qual não eram gente, não eram seres humanos, não contavam; essa experiência de aniquilação da persona se aprofundou em relações posteriores e, sobretudo, com o terapeuta. Para sobreviver, desenvolveram mecanismos através dos quais “se rendiam” ao agressor. Desistiram de resistir e esse comportamento passou a ser um padrão em suas vidas.
O trauma do incesto dura, dura e dura. Recentemente, um médico (em área não relacionada com a psicoterapia e o incesto) revelou que uma paciente declarou que “aquele era o dia mais feliz da vida dela”. Perguntada por que, respondeu que o pai incestuoso havia falecido. A paciente tinha mais de sessenta anos.
Gláucio Ary Dillon Soares
IESP/UERJ
Publicado no GLOBO