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Encontro de Cadáveres e de Ossadas?

POSTADO EM NOVEMBRO 15, 2013

Nas análises das estatísticas criminais, os dados não são classificados como gostaríamos. Algumas classificações impedem ou dificultam a pesquisa e o conhecimento. Há dados, números, mas sem as informações necessárias ou com informações incompletas. Duas dessas categorias são os “Encontros de Cadáveres” e os “Encontros de Ossadas”. Não sabemos o  que são. Esses cadáveres e ossadas não permitem análise detalhada. Podem ser qualquer coisa: homicídios, suicídios, acidentes e até mortes naturais. Mortes naturais? Também! Há, sim, cadáveres jogados, deixados insepultos, alguns, mortos solitários sem uma rede de amigos e familiares que assuma o ônus do enterro – financeiro, de tempo e de esforço. Até donos de bares e biroscas se livram de cadáveres para evitar problemas policiais e judiciais. Dificilmente são alterações intencionais feitas de maneira centralizada. Usualmente são resultados de ações locais cuja soma resulta nas estatísticas publicadas. Não obstante, um sistema é responsável pela totalidade das suas unidades, pelo bom e pelo ruim, pela banda virtuosa e pela banda podre. Nessa perspectiva, os “Encontros de cadáveres e de ossadas” medem a incompetência de um sistema policial e judicial, ou, pior, são tentativas de encobrir os dados, reduzindo artificialmente as taxas de homicídio nesta ou naquela jurisdição local.

Esses vícios constituem um fato inelutável ou podemos reduzir seu número?

Os dados referentes ao Estado do Rio de Janeiro mostram que é possível reduzi-los. Somando os dois tipos de “encontros” – de cadáveres e de ossadas – totalizaram 1.105, em 2002, no Estado do Rio de Janeiro, subiram até 2004, quando atingiram o pico de 1.678. 

Começaram a baixar em 2005, quando houve uma redução de quatrocentos cadáveres e ossadas “encontrados” em relação ao ano anterior. Continuaram baixando até 2010, quando o número chegou a 525, uma redução superior a mil e cem cadáveres em relação a 2004. Se 2010 estivesse no mesmo nível de 2004, teríamos mil e cem encontros de cadáveres e ossadas a mais. Porém, parecem ter atingido um patamar, com números semelhantes: 573, em 2011, e 563, em 2012. Esse nível ainda é alto: pode e deve ser reduzido.

Por que houve essa melhoria nos dados? Não creio que, por um lado, a sociedade civil tenha, espontaneamente, se tornado muito mais humana, nem que todas as unidades das instituições policiais e judiciais tenham decidido, também por conta própria, melhorar a qualidade das estatísticas, reduzindo os erros, a fraude e a mentira. Tampouco podemos usar o acaso como explicação. Não há como explicar, aleatoriamente, a redução de mil e cem mortes, antes classificadas como “Encontro de cadáveres e de ossadas”.

Encontro de cadáveres RJ 2002 a 2012

A explicação mais convincente é a de que houve decisões políticas e administrativas que melhoraram as estatísticas de mortalidade no Estado do Rio de Janeiro.

Por que tanta enfase na melhoria dessas estatísticas? Os encontros são distorções que viciam os dados. Elas alteram o mapa da violência, prejudicam a elaboração de políticas públicas para combater o crime e a violência. Vamos colocar policiais e outros recursos nos lugares errados. Haverá mais erros e menos vidas salvas. 

Uma parte dos cadáveres e ossadas encontrados – não sabemos quão grande ou pequena – é composta por mortes intencionais violentas que não entraram nas estatísticas das respectivas categorias – homicídios inclusive. Alguns ou muitos desses cadáveres e ossadas são homicídios, mas não sabemos exatamente quantos. O que sabemos é que quanto maior o número dos “encontros de cadáveres e de ossadas”, tanto maior o número dos homicídios que não entraram nas estatísticas. Reduz, artificialmente, o número real de vítimas. Essa redução artificial foi bem maior no início do período observado (2002, 2003 e 2004) do que no fim (2010, 2011 e 2012). Como a tendência das taxas de homicídio nesse período (de 2004 a 2012) foi de queda, podemos afirmar que, com dados adequados, a queda seria maior ainda.  É um resultado que merece uma valiação positiva. Porém, paradoxalmente, em todos os anos, a taxa de homicídios foi artificialmente mais baixa do que a “real”, a que encontraríamos, se a fração correta dos “encontros” fosse adicionada aos homicídios. Aumentariam, também, os suicídios e as mortes por acidentes, além das mortes naturais.

Aprofundemo-nos nesses dados: os encontros de cadáveres e de ossadas reúnem duas categorias. O “Encontro de Ossadas” tem totais menores. Os encontros de ossadas diferem dos encontros de cadáveres: são menos numerosos e, na média, são mais antigos. Algumas ossadas são de vários anos. Todas são computadas nas estatísticas do ano em que foram encontradas, introduzindo erros. É mais razoável registrar o encontro de cadáveres no ano em que foram encontrados do que o de ossadas, ainda que esse procedimento também introduza erros. 

Felizmente, as ossadas são em número muito menor. Foram 53 em 2004 e 44 em 2012. Esses números variaram menos durante o período, mostrando que são menos suscetíveis a redução mediante políticas públicas. Não obstante, são maiores do que o total de homicídios em vários países importantes com amplas populações. A Suíça teve um total de 54 homicídios em 2008, a mesma ordem de grandeza que os encontros de ossadas no Estado do Rio de Janeiro. A Holanda, com uma população total de mais de 18 milhões (maior do que a população do nosso estado) teve um total de 179 homicídios em 2009, 29% dos 609 “encontros de cadáveres” no Estado do Rio de Janeiro no mesmo ano. 

Os encontros de cadáveres e ossadas pesam na “cifra negra” das mortes violentas que reúne as mortes sem classificação nem solução adequada. Todos os países, estados e cidades têm uma cifra negra e o seu tamanho indica a incompetência e/ou a desonestidade e a corrupção. Os níveis desses erros no Estado do Rio de Janeiro não são aceitáveis e prejudicam as análises dos dados e um conhecimento adequado que informe os tomadores de decisões que podem salvar centenas ou até milhares de vidas em prazo relativamente curto.

As estatísticas podem ser viciadas por erros, intencionais ou não. Há muitos erros que viciam as estatísticas criminais do Estado do Rio de Janeiro, mas, por justiça, cabe mencionar que eles estão sendo reduzidos.

Tem jeito!

 

GLÁUCIO SOARES      IESP/UERJ

 

 

A maneira violenta de reduzir a violência?

Publicado no Correio Braziliense, Brasília, quinta-feira, 18 de setembro  de 2008 •  27.

O Rio de Janeiro, às vésperas das eleições municipais, se agita com a campanha eleitoral. O Instituto de Segurança Pública (ISP) cumpre com a obrigação de divulgar as estatísticas criminais do primeiro semestre. A divulgação das estatísticas numa época de eleições é explosiva. Os dados são confiáveis? Desde a sua estruturação com Jaqueline Muniz, passando por Ana Paula Miranda, chegando
à atual administração, do tenente-coronel Mário Sérgio Brito Duarte, duas afirmações podem ser feitas: os dados ficam paulatinamente melhores e não há, no ISP, fraude nem adulteração dos dados.
É impossível afirmar categoricamente que nenhum delegado ou comandante adulterou dados, no Rio de Janeiro ou em qualquer lugar. O que, sim, há é um atraso na divulgação, conseqüência de que algumas delegacias ainda são tradicionais, não informatizadas (não são delegacias legais), o que retarda a apuração. Enquanto houver delegacias tradicionais, haverá atrasos.
O que dizem os dados? Para mim, eles indicam uma melhoria na segurança no Estado do Rio de Janeiro em comparação com período semelhante em 2007. Durante o primeiro semestre de 2008 houve 2.859 homicídios, 276 a menos do que os 3.135 ocorridos no mesmo período de 2007. Um descenso de 8,8% é considerável. Porém, o que mais assusta a população são os latrocínios, e os latrocínios aumentaram: de 89 para 107. O aumento de 18 latrocínios é pequeno em relação ao declínio de 276 homicídios dolosos. O risco de morrer em um
homicídio doloso comum é quase 27 vezes maior do que morrer num latrocínio.

Os analistas e os defensores dos direitos humanos (para todos) se preocupam, com razão, com o número elevado de mortos em “autos de resistência”; para uns, um indicador do grau do conflito entre a polícia e os criminosos; para outros, um indicador do grau de violência policial. Eles aumentaram de 694 para 757, 63 vidas a mais,
equivalentes a 9% sobre 2007.
No cômputo total das vidas, foram 276 ganhas com a redução dos homicídios, 18 perdidas com o aumento dos latrocínios (uma subcategoria dos homicídios) e mais 63 perdidas com o aumento dos autos de resistência. Friamente, um saldo de 195 vidas salvas no semestre.
A análise relacional entre a mudança nos homicídios e a mudança nos latrocínios não sugere uma relação muito significativa; porém, a mesma análise nos diz que as diferenças nos homicídios totais e nos autos de resistência não devem ser vistas como acidentais. Elas podem estar relacionadas.
A próxima etapa numa pesquisa poderá averiguar qual a distribuição espacial dessas mortes, se as AISPs com maior aumento nos autos de resistência também são as com maior redução nos homicídios. Se forem, a hipótese relacional ficará fortalecida, sugerindo que a política pública e as práticas policiais que matam mais pelas mãos da polícia são as mesmas que reduzem os homicídios.
Furtos e roubos de veículos estão entre os dados mais confiáveis devido ao seguro obrigatório. Os roubos caíram de 17 mil para 14 mil, um bom saldo de 3 mil veículos roubados a menos. Já os furtos baixaram de 11.052 para 10.748, 300 a menos.
Os demais resultados devem ser lidos com cuidado. Poucos são confiáveis, devido à altíssima subenumeração.Os assaltos a pedestres e transeuntes não estão entre os dados confiáveis, porque as pesquisas de vitimização indicam que a maioria dos assaltos não chega ao conhecimento da polícia. Não obstante, o crescimento foi grande, o que paradoxalmente nos sugere que aumentaram, mas não sabemos quanto. Formulo a hipótese de que parte desse aumento se deve à migração de parte do tráfico para outros crimes, inclusive os assaltos.
Fico preocupado com as reações que já apareceram a esses números. A linha dura está feliz, mostrando que a política de endurecimento dá certo. Morreriam mais bandidos para salvar um número muito maior de cidadãos. Infelizmente, não é bem assim. Nem todos os que morrem são bandidos e muitos dos que não morreram o são. Além disso, o direito à vida é de todos e não, apenas, dos cidadãos de bem. Precisamos buscar políticas e práticas que continuem reduzindo os homicídios, mas que reduzam também as mortes por autos de resistência. Do outro lado do espectro ideológico, o aumento nos autos de resistência fecha a questão. Já diz tudo. As práticas são erradas e truculentas. Desconsideram as 276 vidas humanas salvas no semestre com a redução dos homicídios dolosos comuns. E os significativos resultados na redução dos furtos e roubos de veículos também são ignorados.
No Brasil, a questão da segurança pública se politizou. Infelizmente, foi além da politização: ficou refém da ideologia do analista. Seus participantes sofreram um triste encolhimento cognitivo: são a favor, não importa o quê; são contra, não importa o quê. O dado é desprezado, e o conhecimento morre.

GLAUCIO ARY DILLON SOARES